SERMÃO XXXIII - Aos
Sacerdotes reunidos em Sínodo
"Ide, anjos velozes, a uma gente desolada e
dilacerada, a um povo terrível, após o qual não há outro, uma gente que espera e é
pisada, cujos rios destroçaram sua
terra".
Is. 18, 2
Eis, irmãos caríssimos, o
divino ofício que nos foi confiado. Eis o cuidado, a solicitude e o trabalho
dos sacerdotes. Eis a piedosa, mas perigosa responsabilidade que lhes foi
imposta:
"Ide, anjos
velozes".
A palavra profética, ou
melhor, a palavra divina, nos admoesta nesta passagem que não desprezemos o
ministério que nos foi divinamente confiado, nem que abandonemos esta santa
responsabilidade, para que não ocorra que os homens, formados à imagem e
semelhança de Deus, redimidos pelo precioso sangue de Cristo, por nossa
negligência deslizem para a condenação eterna por suas culpas temporais. E que
não venha a ocorrer que não somente neles se encontre o pecado por causa de
seus próprios delitos, mas que também em nós, além dos nossos próprios, se
acrescentem os pecados alheios. Haveremos, efetivamente, de dar conta não
somente de nós, mas também das almas que nos tiverem sido confiadas, a não ser
que lhes tivermos anunciado insistentemente a palavra da salvação.
Ouçamos, pois, mais
atentamente o que nos é divinamente ensinado:
"Ide, anjos velozes,
a uma gente
desolada".
Os sacerdotes são anjos,
como se depreende de uma passagem da Escritura em que se afirma que "Os lábios do
sacerdote são os guardas da
sabedoria, e pela sua boca se há de
buscar a lei, porque ele é o anjo do
Senhor dos exércitos".
Mal. 2, 7
Se somos, portanto,
sacerdotes do Senhor, também somos, pelo mesmo ofício, Seus anjos, isto é, Seus
mensageiros, e devemos anunciar ao povo as coisas que são de Deus. "Ide, anjos velozes, a uma gente
desolada".
Demonstra-se de dois modos
que a natureza humana provém de Deus e que nEle possui suas raízes, conforme já
o dissemos em outro lugar. Primeiramente, por ter sido criada à imagem de Deus,
na medida em que pode conhecer a verdade; depois, por ter sido criada à Sua
semelhança, na medida em que pode amar o bem. Segundo estes dois modos pode ser
reconhecida como unida a Deus não apenas a criatura humana, como também a
angélica, na medida em que pelo conhecimento contempla a Sua sabedoria e pelo amor
frui de Sua felicidade. Por estes dois modos evita o mal, pois pelo
conhecimento da verdade que possui desde a origem na divina imagem que lhe foi
enxertada repele o erro e pelo amor da virtude que possui na semelhança divina
odeia a iniquidade. Pela sugestão diabólica, porém, entrando a ignorância na
natureza humana, e desarraigou-se no homem a raiz do conhecimento divino;
sobrevindo também a concupiscência, arrancou-se a planta do amor.
Qualquer gente ímpia,
portanto, afastada pela culpa dos bens divinos e celestes, plantada
primeiramente no bem pelos dois bens precedentes, sobrevindo-lhe os dois males
seguintes é corretamente apresentada e chamada de desolada do bem: "Ide, anjos velozes, a uma gente
desolada".
E, deve-se notar, a
palavra divina não diz apenas desolada, como também acrescenta
"dilacerada", desolada por ter sido afastada do bem, dilacerada por
ter mergulhado no mal. A natureza humana, efetivamente, depois que é afastada
do bem, é imediatamente e de múltiplas maneiras dilacerada pelo mal, conduzida
por diversos vícios e pecados à condenação. Alguns pelo orgulho, outros pela
inveja, outros pela ira, outros pela acédia, outros pela avareza, outros pela
gula, outros pela luxúria, outros pela usura, outros pela rapina, outros pelo
furto, outros pelo falso testemunho, outros pelo perjúrio, outros pelo
homicídio, outros contemplando a mulher para desejá-la, outros chamando `louco'
a seu irmão, e por tantos outros vícios ou pecados, interiores e exteriores, os
quais pela brevidade do presente não queremos nem podemos enumerar.
"Ide", portanto, "anjos velozes, a uma gente desolada e
dilacerada", para que, pelo vosso
ensino, torneis a unir o que foi dilacerado pelo mal, e replanteis o que foi
desenraizado do bem. "Ide, anjos", ide "velozes", ide "a uma gente desolada
e dilacerada, a um povo terrível, após o qual não há
outro".
Todas as vezes, irmãos
caríssimos, que o homem pela justiça conserva a nobreza, a elegância e a beleza
de sua condição, verificamo-lo possuir uma aparência formosa. Quando, porém,
pela culpa mancha em si mesmo o decoro da beleza, encontramo-lo imediatamente
deforme e horrível, dessemelhante de Deus, tornado semelhante ao demônio.
E então? Nos dias de
domingo e nas solenidades festivas o povo confiado aos vossos cuidados aflui à
igreja, ajusta sua forma corporal, reveste-se com roupas mais ornamentadas e
tingidas de diversas cores. Vós, talvez, contemplando homens e mulheres trajados
de modo tão fulgurante, vos gloriareis de terdes tais súditos e de serdes seus
prelados. Não é boa, porém, esta vossa glória se é nisto que vos gloriais e se
o povo a vós confiado for encontrado desolado e afastado do bem, dilacerado
pelo mal e terrível pelos diversos vícios e pecados. Prestai diligentemente
atenção em suas vidas, considerai seus costumes, julgai a sua beleza segundo as
coisas que pertencem ao homem interior e não segundo as que pertencem ao
exterior, enrubescei e compadecei-vos deste povo que é vosso súdito, se tal o
virdes como aqui ouvis, isto é, "uma gente desolada e
dilacerada, um povo terrível, após o qual não há
outro", porque talvez vossa seja a
culpa, vossa a negligência, vossa a preguiça, por ele ser tal porque não lhe
anunciastes os seus pecados e as suas impiedades.
"Ide", portanto, "anjos velozes, a uma gente desolada e
dilacerada, a um povo terrível, após o qual não há
outro". "Ide, anjos",
porque é o vosso ofício. "Ide, velozes", para que a vossa demora não
cause perigo. "Ide a uma gente
desolada e dilacerada, a um povo terrível, após o qual não há
outro", para que pelo vosso ensino
se alcance o remédio:
"Não queirais
sentar-vos no conselho da vaidade, nem associar-vos com os que planejam a
iniquidade. Odiai a sociedade dos
malfeitores, e não queirais sentar-vos
com os ímpios".
Salmo 25, 4-5
Alguém de vós poderá
pensar silenciosa ou mesmo responder abertamente, dizendo: "Tu nos proíbes, pelo exemplo que nos
colocas do Salmista, de nos dirigirmos a estes, mas é a estes que o Senhor
nos encaminha, quando nos diz:
Ide, anjos velozes, a uma gente desolada e
dilacerada, a um povo terrível, após o qual não há
outro".
Entendei, porém, que onde
o Senhor diz: "Ide, anjos velozes, a uma gente desolada e dilacerada, a um
povo terrível, após o qual não há outro", Ele vos impõe aqui um ofício, e
vos dá o preceito de ensinar aos ímpios; ali, porém, onde dissemos: "Não
queirais sentar-vos no conselho da vaidade, nem associar-vos com os que
planejam a iniquidade; odiai a sociedade dos malfeitores, e não queirais
sentar-vos com os ímpios", aqui, digo, vos é continuamente negada a
permissão para pecar com os ímpios.
"Ide", portanto,
"anjos", para ensinar; não queirais ir para pecar. "Ide a um
povo terrível", para que pela palavra da salvação o torneis de formosa
aparência; não queirais ir, para que pela deformidade de seu pecado vos torneis
a vós mesmos semelhantes a eles. Cristo comeu com os pecadores para associá-los
consigo mesmo no bem, mas não comeu com eles para que se associasse com eles no
mal. "Assim como Cristo o fêz, assim fazei-o vós também; assim como Ele
não fez, assim não o queirais vós fazer". "Ide, anjos
velozes". Quão velozes? Tão velozes
que "pelo caminho não saudeis a ninguém" (Luc. 10, 4), e, "se
alguém vos saudar", "não lhe
respondais".
2 Reis 4, 29
Não que a salvação não
deva ser anunciada a todos; por estas palavras o Espírito Santo quer dar a
entender quão velozes e pressurosos importa que sejam os sacerdotes no anúncio
da salvação, como se dissesse: "Prega a palavra, insiste a tempo e fora de
tempo, repreende, suplica,
admoesta com toda a paciência e
doutrina",
2 Tim. 4, 2
e "não queirais adiar a
palavra dia após dia, de domingo a domingo, de solenidade a
solenidade, mas que, ao menos nos domingos e nas solenidades festivas não vos seja suficiente
celebrar somente as missas para o povo reunido na
igreja segundo o costume. Não seja suficiente para o
homem apostólico e para cada uma das ordens fazer um discurso genérico ou anunciar a festa da
semana seguinte. Antes, castigai o povo
sobre o mal, ensinai-o e formai-o no
bem, declarai-lhes a pena que há de vir sobre os
pecadores e a glória reservada aos
justos". "Ide, anjos; ide
velozes". Se adiais de domingo a domingo pregar ao povo a palavra da
salvação, quem saberá dizer se então estareis vivos, sãos ou presentes? E ainda
que ocorra que estejais vivos, sãos ou presentes, quem saberá se alguém que
antes estava presente estará então ausente e não mais ouvindo o bom conselho
para a sua alma, surpreendido por uma morte inesperada e súbita, seja
arrebatado para a pena eterna sem se ter lavado da sua culpa? Porventura de
vossas mãos Deus não pedirá com justiça contas do sangue deste homem?
"Ide", pois, "anjos velozes, a uma gente desolada e
dilacerada, a um povo terrível, após o qual não há
outro". O que significa: `Depois
do qual não há outro'? Porventura depois deste povo não haverá mais de nascer
ou de viver quem faça o bem ou quem faça o mal? Certamente que não. O que
significa, então, o `após o qual não haverá outro'? Significa que não haverá, diante
do supremo juiz, ninguém pior, mais torpe pela culpa, mais terrível do que
este. Três são os povos: o cristão, o judeu, e o pagão. Aqueles que no povo
cristão são cristãos segundo o nome, mas que pela injustiça servem ao demônio,
são mais terríveis que os judeus ou os pagãos, já que são piores pela
iniquidade. De fato, quanto mais facilmente, ajudados pela graça, se quiserem,
podem permanecer na justiça, tanto mais gravemente ofendem não querendo
abster-se da culpa. Aquele a quem mais foi confiado, mais lhe será exigido.
Quanto mais alto for o degrau, tanto maior será a queda, e mais pecou o demônio
no céu, do que o homem no paraíso. Conforme no-lo ensina a Escritura, "Aquele servo, que conheceu a vontade de
seu Senhor, e não se preparou, e não precedeu conforme a
sua vontade, levará muitos açoites. O servo, porém, que não a conheceu, e fez coisas dignas de
castigo, evará poucos
açoites".
Luc. 12, 47-8
Assim como no-lo é
manifestado por esta sentença, assim também o Senhor repreendeu as cidades em
que havia feito vários prodígios, pelo fato de não haverem feito penitência,
dizendo: "Ai de ti, Corozaim! Ai de ti, Betsaida! Porque, se em Tiro e em
Sidônia tivessem sido feitos os
milagres que se realizaram em vós, há muito tempo eles teriam
feito penitência em cilício e em cinza. Por isso eu vos digo que haverá menor rigor para Tiro e Sidônia no dia
do Juízo do que para vós. E tu, Cafarnaum, elevar-te-ás porventura
até o céu? Não, hás de ser abatida
até o inferno. Se em Sodoma tivessem sido
feitos os milagres que se fizeram
em ti, ainda hoje existiria. Por isso vos digo que no
dia do Juízo haverá menos rigor para a
terra de Sodoma que para ti".
Mat. 11, 21-24
Deste mesmo modo pode-se
repreender também este povo de falsos cristãos, depravado por diversas
impiedades, feito terrível, distante da divina semelhança da qual se afastou
segundo a sua iniquidade: "Ai de ti, povo
iníquo,
povo mentiroso, povo
apóstata, que pela tua má vida
conculcas o Filho de Deus,
que manchaste o sangue do
Testamento em que foste santificado e fazes injúria ao
Espírito da graça! Melhor seria para estes não conhecer o caminho da
justiça
do que, depois de o terem
conhecido, tornarem para trás daquele
mandamento
que lhes foi dado. De fato realizou-se neles aquele provérbio verdadeiro: 'Voltou o cão para o seu
vômito e a porca lavada tornou a
revolver-se no lamaçal'' (2 Pe. 2,
21-22)". Como não vemos, portanto,
que este povo não poderá ser pior do que si mesmo e que nenhum outro povo mau
haverá de vir depois dele? Neste o peso dos males manifestado pela palavra
profética já parece ter-se espalhado, pelo que se diz: “Ai de vós, os que ao mal chamais bem, e ao bem mal, que tomais as trevas por
luz, e a luz por trevas, que tendes o amargo por
doce, e o doce por amargo! Ai de vós, os que sois sábios a
vossos olhos e, segundo vós mesmos,
prudentes! Ai de vós os que sois
poderosos para beber vinho, e fortes para fazer
misturas inebriantes! Vós os que justificais o
ímpio pelas dádivas, e ao justo tirais o seu
direito!".
Is. 5, 20-23
De todas estas coisas,
irmão caríssimos, há muito mais que poderia ser dito, as quais temos que
omití-las por causa da brevidade. "Ide, anjos velozes, a um povo terrível, após o qual não há outro, a uma gente que espera e é
pisada". O que ela espera? A vossa
palavra, o vosso exemplo, o vosso amparo e, pela vossa solicitude e pelo vosso
serviço, o auxílio e o dom divino. Espera a vossa palavra, para que possa
aprender; o vosso exemplo, para que dele receba a forma; o vosso amparo, para
que seja defendido; por vossa solicitude e serviço, o auxílio e o dom divino
para que possa ser libertado do mal e justificado no bem. "E é pisada". Quem a pisou? Todos os
demônios, que continuamente dizem à sua alma: "Curva-te, para que passemos
por ti". De fato, os maus, os que desprezam as coisas celestes, e se
curvam para as terrenas, oferecem aos demônios o caminho para serem por eles pisados
e atravessados.
Segue-se: "Cujos rios
destroçaram sua terra". Quem são estes rios que
destroçam a terra dos que vivem mal? Onde os vícios fluem com impetuosidade,
carregam consigo os maus aos tormentos. O que é a destruição da terra, senão a
dissipação de qualquer virtude? Os rios, portanto, destroçam a terra dos maus
quando os vícios lhes removem as virtudes. A soberba, de fato, remove a
humildade, a ira remove a paz, a inveja a caridade, a acédia a exultação
espiritual, a avareza a liberalidade, a luxúria a continência. "Ide, anjos velozes, a uma gente desolada e
dilacerada, a um povo terrível, após o qual não há outro, uma gente que espera e é
pisada, cujos rios destroçaram sua
terra". "Naquele tempo",
acrescenta logo em seguida Isaías, "será levada uma
oferta ao Senhor dos exércitos por um povo desolado e
dilacerado, por um povo terrível, após o qual não houve
outro, por uma gente que espera e
é pisada, cujos rios destroçaram a
sua terra".
Is. 18, 7
De que tempo nos fala o
profeta? Daquele tempo em que tiverdes ido a este povo ao qual sois enviados e,
pelo vosso ensino, o tiverdes curado dos males que já mencionamos. Que oferta
então será levada ao Senhor? Uma oferta de gratidão, um holocausto entranhado e
medular, um voto interior, que será levado ao lugar do nome do Senhor, ao monte
Sião, isto é, à Santa Igreja. Ide, pois, anjos velozes,
e ensinai ao povo terrível, cumpri o vosso ministério. Se assim o fizerdes,
alcançareis para vós um bom lugar. Que a vós e a nós conceda esta graça aquele
que nos promete também a glória, Jesus Cristo, Nosso Senhor, o qual vive e reina,
por todos os séculos dos séculos.
Amén.