(OBRA: São Francisco de Sales, Filotéia – ou Introdução à Vida
Devota –, Ed. Vozes, 16ª edição, 2008, págs. 363 à 367).
Assim que a tua devoção se for tornando conhecida no mundo,
maledicências e adulações te causarão sérias dificuldades de praticá-la. Os
libertinos tomarão a tua mudança por um artifício de hipocrisia e dirão que
alguma desilusão sofrida no mundo te levou por pirraça a recorrer a Deus.
Os teus amigos, por sua vez, se apressarão a te dar avisos
que supõem ser caridosos e prudentes sobre a melancolia da devoção, sobre a
perda do teu bom nome no mundo, sobre o estado de tua saúde, sobre a
necessidade de viver no mundo conformando-se aos outros e, sobretudo, sobre os
meios que temos para salvar-nos sem tantos mistérios.
Filotéia, tudo isso são loucas e vãs palavras do mundo e, na
verdade, essas pessoas não têm um cuidado verdadeiro de teus negócios e de tua
saúde: Se vós fôsseis do mundo, diz Nosso Senhor, amaria o mundo o que era seu;
mas, como não sois do mundo, por isso ele vos aborrece.
Veem-se homens e mulheres passarem noites inteiras no jogo;
e haverá uma ocupação mais triste e insípida do que esta? Entretanto, seus
amigos se calam; mas, se destinamos uma hora à meditação ou se nos levantamos
mais cedo, para nos prepararmos para a santa comunhão, mandam logo chamar o
médico, para que nos cure desta melancolia e tristeza.
Podem-se passar trinta noites a dançar, que ninguém se queixa;
mas por levantar-se na noite de Natal para a Missa do Galo, começa-se logo a
tossir e a queixar de dor de cabeça no dia seguinte.
Quem não vê que o mundo é um juiz iníquo, favorável aos seus
filhos, mas intransigente e severo para os filhos de Deus?
Só nos pervertendo com o mundo, poderíamos viver em paz com
ele, e impossível é contentar os seus caprichos – Veio João Batista, diz o
divino Salvador, o qual não comia pão nem bebia vinho, e dizeis: Ele está
possesso do demônio. Veio o Filho do Homem, come e bebe, e dizeis que é um
samaritano.
É verdade, Filoteia, se condescenderes com o mundo e jogares
e dançares, ele se escandalizará de ti; e, se não o fizeres, serás acusada de
hipocrisia e melancolia. Se te vestires bem, ele te levará isso a mal, e, se te
negligenciares, ele chamará isso baixeza de coração. A tua alegria terá ele por
dissolução e a tua mortificação por ânimo carrancudo; e, olhando-te sempre com
maus olhos, jamais lhe poderás agradar.
As nossas imperfeições ele considera pecados, os
nossos pecados veniais ele julga mortais, e malícias, as nossas enfermidades; de
sorte que, assim como a caridade, na expressão de S. Paulo, é benigna, o mundo
é maligno.
A caridade nunca pensa mal de ninguém e o mundo o pensa
sempre de toda sorte de pessoas; e, não podendo acusar as nossas ações, condena
ao menos nossas intenções. Enfim, tenham os carneiros chifres ou não, sejam
pretos ou brancos, o lobo sempre os há de tragar, se puder.
Procedamos como quisermos, o mundo sempre nos fará guerra.
Se nos demorarmos um pouco mais no confessionário, perguntará o que temos tanto
que dizer; e, se saímos depressa, comentará que não contamos tudo. Espreitará
todas as nossas ações e, por uma palavra um pouco menos branda, dirá que somos
insuportáveis.
Chamará avareza o cuidado por nossos negócios, e idiotismo a
nossa mansidão. Mas, quanto aos filhos do século, sua cólera é generosidade;
sua avareza, sábia economia; e suas maneiras livres, honesto passatempo.
É bem verdade que as aranhas sempre estragam o trabalho das
abelhas!
Abandonemos este mundo cego, Filotéia; grite ele quanto
quiser, como uma coruja para inquietar os passarinhos do dia. Sejamos firmes em
nossos propósitos, invariáveis em nossas resoluções e a constância mostrará que
a nossa devoção é séria e sincera.
Os cometas e os planetas parecem ter o mesmo brilho; mas os
cometas, que são corpos passageiros, desaparecem em breve, ao passo que os
planetas brilham continuamente. Do mesmo modo muito se parece a hipocrisia com
a virtude sólida e só se distingue porque aquela não tem constância e se
dissipa como a fumaça, ao passo que esta é firme e constante.
Demais, para assegurar os começos de nossa devoção, é muito
bom sofrer desprezos e censuras injustas por sua causa; deste modo nós nos
premunimos contra a vaidade e o orgulho, que são como as parteiras do Egito, às
quais o infernal Faraó mandou matar os filhos varões dos judeus no mesmo dia de
seu nascimento. Enfim, nós estamos crucificados para o mundo e o mundo deve ser
crucificado para nós. Ele nos toma por loucos; consideremo-lo como um
insensato.
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