Quase todas as paixões que
se revoltam contra nosso espírito têm sua origem na liberdade desenfreada dos
olhos, pois os olhares livres são os que despertam em nós, de ordinário, as
inclinações desregradas.
“Fiz um contrato com meus
olhos de não cogitar sequer em uma virgem”, diz Jó (Job 31, 1). Mas, por que
diz ele de não pensar sequer em uma virgem?
Não parece que deveria
dizer: Fiz um contrato com meus olhos de não olhar sequer? Não, ele tem toda a
razão de falar assim, porque o pensamento está intimamente ligado ao olhar, não
se podendo separar um do outro, e, para não ter maus pensamentos, propôs-se
esse santo homem nunca olhar para uma virgem.
Santo Agostinho diz: “Do
olhar nasce o pensamento, e do pensamento a concupiscência”. Se Eva não tivesse
olhado para o fruto proibido, não teria pecado; ela, porém, achou gosto em
contemplá-lo, parecendo-lhe bom e belo; apanhou-o então, e fez-se culpada da
desobediência.
Aqui vemos como o demônio
nos tenta primeiramente a olhar, depois a desejar e, finalmente, a consentir.
Por isso nos assegura São Jerônimo que o demônio só necessita de nosso começo:
dá-se por satisfeito se lhe abrimos a metade da porta, pois ele saberá
conquistar a outra metade.
Um olhar voluntário, lançado
a uma pessoa do outro sexo, acende uma faísca infernal que precipita a alma na
perdição. “As primeiras setas que ferem as almas castas, diz São Bernardo (De
mod. ben. viv., serm. 23), e não raro as matam, entram pelos olhos”.
Por causa dos olhos caiu
Davi, esse homem segundo o coração de Deus. Por causa dos olhos caiu Salomão,
esse instrumento do Espírito Santo. Por causa dos olhos, quantas almas não se
perderam eternamente?
Vigiar!
Vigie, pois, cada um sobre
seus olhos, se não quiser chorar uma vez com Jeremias: “Meus olhos me roubaram
a vida” (Jer 3, 51); as afeições criminosas que penetraram em meu coração por
causa dos meus olhares, lhe deram a morte.
São Gregório diz (Mor. 1,
21, c. 2): “Se não reprimires os olhos, tornar-se-ão ganchos do inferno, que a
força nos arrastarão e nos obrigarão, por assim dizer, a pecar contra a nossa
vontade”. “Quem contempla objeto perigoso, acrescenta o Santo, começa a querer
o que antes não queria”. É também o que diz a Sagrada Escritura (Jdt 16, 11), quando
diz que a bela Judite escravizou a alma de Holofernes, apenas este a
contemplou.
Sêneca diz que a cegueira é
mui útil para a conservação da inocência. Seguindo esta máxima, um filósofo
pagão arrancou-se os olhos para quardar a castidade, como nos refere
Tertuliano. Isso, porém, não é lícito a nós, cristãos; se queremos conservar a
castidade, devemos, contudo, fazer-nos cegos por virtude, abstendo-nos de olhar
o que possa despertar em nós os maus pensamentos.
“Não contemples a beleza
alheia; disso origina-se a concupiscência, que queima como o fogo” (Ecli 9, 8).
À vista seguem-se as imaginações pecaminosas, que acendem o fogo impuro.
São Francisco de Sales
dizia: “Quem não quiser que o inimigo penetre na fortaleza, deve conservar as
portas fechadas”. Por essa razão foram os Santos tão cautelosos em seus
olhares. Por temor de enxergarem inesperadamente qualquer objeto perigoso,
conservavam os olhos quase sempre baixos, e se abstinham de olhar coisas
inteiramente inocentes.
São Bernardo, depois de um
ano inteiro no noviciado, não sabia ainda se o teto de sua cela era plano ou
abobadado. Na igreja do convento havia três janelas e ele não o sabia, porque
conservara os olhos baixos.
Evitavam os Santos, com
cautela maior ainda, pôr os olhos em pessoa de outro sexo. São Hugo, bispo,
nunca olhava para o rosto das mulheres com quem tinha de conversar. Santa Clara
nunca olhava para a face de um homem. Aconteceu uma vez que, levantando os olhos
para a Hóstia Sagrada, durante a Elevação, viu o rosto do sacerdote, com o que
ficou profundamente aflita.
Julgue-se agora quão grande
é a imprudência e temeridade dos que, não possuindo a virtude dum desses
Santos, ousam passear suas vistas em todas as pessoas, não exceptuando as de
outro sexo, e querendo ainda ficar livre de tentações e do perigo de pecar. São
Gregório diz (Dial. 1.2, c. 2) que as tentações que levaram São Bento a
revolver-se sobre espinhos, provieram de um olhar imprudente sobre uma senhora.
São Jerônimo, achando-se na
gruta de Belém, onde continuamente orava e macerava seu corpo com as mais
atrozes penitências, foi por longo tempo atormentado pela lembrança das damas
que vira tempos antes em Roma.
Como, pois, poderemos ficar
preservados de tentações, quando nos expomos ao perigo, olhando e até fitando
complacentemente pessoas de outro sexo?
O que nos prejudica não é
tanto o olhar casual como o premeditado, o mirar.
Razão porque Santo Agostinho
diz (Reg. ad Serv. Dei, n. 6): “Se vossos olhos casualmente caírem sobre uma
pessoa, cuja vista vos pode ser prejudicial, guardai-vos, ao menos, de
fitá-la”. E São Gregório diz: “Não é lícito contemplar ou extasiar-se com a
vista daquilo que não é lícito desejar, pois, ainda que expulsemos os maus
pensamentos que costumam seguir o olhar voluntário, deixam sempre uma mancha na
alma”.
Tendo se perguntado ao irmão
Rogério, franciscano, dotado de uma pureza angélica, por que se mostrava tão
reservado em seus olhares, quando trata va com mulheres, respondeu: “Se o homem
foge à ocasião, Deus o protege; se se expõe a ela, Nosso Senhor o abandona e
facilmente cairá no pecado”.
Suposto mesmo que a
liberdade que se concede aos olhos não produzisse outros males, impediria sempre
o recolhimento da alma durante a oração; pois tudo o que vimos e nos
impressionou, apresenta-se aos olhos de nossa alma e nos causa uma imensidade
de distrações. Quem já tem recolhimento de espírito durante a oração, tome
muito cuidado para não se ver privado dessa graça dando liberdade a seus olhos.
Está fora de dúvida que um
cristão que vive sem recolhimento de espírito não pode praticar as virtudes
cristãs da humildade, da paciência, da mortificação, como deveria.
Guardemo-nos, por isso, de olhares curiosos, e só olhemos para objetos que
elevam para Deus o nosso espírito.
“Olhos baixos elevam o
coração para o Céu”, dizia São Bernardo. São Gregório Nazianzeno (Ep. ad
Diocl.) escreve: “Onde habita Cristo com Seu amor, reina aí a modéstia”.
Com isso não quero, porém,
dizer que nunca se deva levantar os olhos ou considerar coisa alguma; pelo
contrário, é até bom, às vezes, olhar coisas que elevam nosso coração para
Deus, como santas imagens, prados floridos, etc, já que a beleza dessa criatura
nos atrai à contemplação do Criador.
Deve-se notar também que a
modéstia dos olhos é necessária não só para nosso próprio bem, como para a
edificação do próximo. Só Deus vê o nosso coração; os homens vêem apenas nossas
obras externas e, ou se edificam, ou se escandalizam com elas. “Pelo rosto se
conhece o homem”, diz a Escritura (Ecli 19, 26), isto é, pelo exterior se
depreende o que é o homem interiormente.
Todo cristão, por isso, deve
ser o que era São João Batista, conforme as palavras do Salvador (Jo 5, 35):
“Uma lâmpada que arde e ilumina”. Interiormente deve arder em amor divino;
exteriormente, alumiar, pela modéstia, a todos os que o vêem.
Também a nós se podem
aplicar as palavras que São Paulo dirigiu a seus discípulos (I Cor 4, 9):
“Somos o espetáculo dos anjos e dos homens”. “A vossa modéstia seja conhecida
de todos os homens” (Filip 4, 5).
Pessoas devotas são
observadas pelos anjos e pelos homens, e, por isso, sua modéstia deve ser
notória a todos, do contrário, deverão dar rigorosas contas a Deus no dia do
Juízo. Observando a modéstia, edificamos sumamente os outros e os estimulamos à
prática da virtude.
Exemplos dos santos
É celebre o que se conta de
São Francisco de Assis: Uma vez deixou ele o convento junto a uma companheiro,
dizendo que ia pregar; tendo dado uma volta pela cidade com os olhos baixos,
entrou novamente no convento. ‘Mas quando farás o sermão?’, perguntou-lhe o
companheiro. ‘Já o fiz, respondeu-lhe o Santo, consistiu todo no resguardo dos
olhos, do que demos exemplo ao povo’.
Santo Ambrósio diz que a
modéstia das pessoas virtuosas é uma exortação mui poderosa ao coração dos
mundanos. “Quão belo não seria se bastasse te apresentares em público para
fazeres bem aos outros!” (In ps. 118, s. 10).
De São Bernardino de Sena se
conta que, mesmo antes de entrar para o convento, bastava só a sua presença
para pôr fim às conversas livres de seus companheiros; mal o avistavam, diziam
uns para os outros: Silêncio, Bernardino vem vindo; e então calavam-se ou
começavam a falar de outras coisas.
Santo Efrém, segundo o
testemunho de São Gregório de Nissa, era tão modesto, que já a sua vista
estimulava à devoção, e não se podia vê-lo sem se sentir levado a se tornar
melhor. Mais admirável ainda é o que nos refere Suvio, do santo sacerdote e
mártir Luciano: só por sua modéstia moveu muitos pagãos a abraçarem a santa Fé.
O imperador Mazimiano, que
fôra disso informado, temendo sentir a sua influência e ser obrigado a
converter-se, citou-o à sua presença, mas não quis vê-lo, e sujeitou-o ao
interrogatório ocultando-o a suas vistas por uma cortina estendida entre os
dois.
Ideal perfeito de modéstia
Nosso ideal mais perfeito de
modéstia foi, porém, o nosso Divino Salvador mesmo, pois, como nota um célebre
autor, os Evangelistas dizem, várias vezes, que o Redentor levantou os olhos em
certas ocasiões, dando a entender, com isso, que tinha ordinariamente os olhos
baixos. Por isso exalta o Apóstolo a modéstia de seu Divino Mestre, escrevendo
a seus discípulos: “Rogo-vos pela mansidão e modéstia de Cristo”
(II Cor 10, 1).
Concluo com as palavras de
São Basílio a seus monges: “Se quisermos que nossa alma tenha suas vistas
sempre postas no Céu, filhos queridos, conservemos nossos olhos sempre voltados
para a terra”.
De manhã, ao despertar,
devemos já pedir, com o Profeta: “Afastai meus olhos, Senhor, para que não
vejam a vaidade” (Sl 118,37).
Santo Afonso Maria de
Ligório, Tratado da Castidade
Fonte: Blog Escrito dos
santos
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