“Uma
reflexão natalina da filósofa judia que se converteu ao
cristianismo e morreu mártir.”
Por
Claudia Mancini, em Libertà e Persona
No
recolhimento da abadia beneditina de Beuron, em 1932, três anos
antes de entrar no carmelo, Edith Stein escreveu uma riquíssima
meditação teológica sobre o Natal. O texto, pronunciado numa
conferência da Associação de Acadêmicos Católicos de
Ludwigshafen, na Renânia-Palatinado, Alemanha, foi publicado pela
primeira vez em 1950, em Colônia.
Filósofa,
judia, ateia, convertida, religiosa e mártir, essa mulher especial
começa a meditação não com uma citação erudita, como quem se
esforçasse por captar as atenções, e sim com uma reflexão que
surpreende pela simplicidade; pela simplicidade de quem tem o olhar
inclusivo da fenomenologia. Edith Stein destaca que o fascínio do
Natal atinge a todos, mesmo os que pertencem a outras religiões e os
não-crentes, para quem a antiga história do Menino de Belém não
diz nada.
Nas
semanas anteriores ao dia de Natal, "uma
cálida corrente de amor inunda toda a terra",
porque "todos
preparam a festa e tentam irradiar um raio de alegria".
É sempre apreciável o gesto de procurar e dar alegria, de preparar
e de preparar-se para uma festa: são gestos estruturalmente humanos.
Para o cristão, porém, especialmente para os cristãos católicos,
a estrela que leva até a manjedoura é diferente. O coração de
quem vive com a Igreja, desde o repicar do “Rorate
Coeli” até
os cantos do Advento, começa a bater em uníssono com a sagrada
liturgia que emoldura um momento único: o tempo de uma espera que é
também ardente nostalgia. Uma espera-nostalgia que cresce durante o
Advento e encontra satisfação somente quando os sinos da Missa do
Galo anunciam que "o
Verbo se fez carne".
Com este anúncio, vemo-nos sempre diante do fascínio do Menino na
manjedoura, que estende as mãos e parece já dizer, sorrindo, o que
mais tarde os seus lábios de Mestre repetirão até o último
suspiro na cruz: "Segue-me".
Atenção:
a Luz da estrela e o encanto do Menino na manjedoura duram um piscar
de olhos. "À
luz descida do céu, opõe-se, ainda mais escura, a noite do pecado".
Diante do Menino, ao mesmo tempo, os espíritos se dividem em
"contra" e "a favor". Diante do "segue-me",
quem não é por Ele é contra Ele. Não por acaso, no dia depois do
Natal, enquanto ainda ecoam os sons festivos dos sinos da noite e das
festivas liturgias natalinas, a Igreja se desveste do branco de festa
e se reveste do vermelho do sangue, e, no quarto dia, já usa o roxo
do luto para recordar o primeiro mártir, Estêvão, e as crianças
inocentes que foram mortas por Herodes. O que isto significa? Onde
foi parar o encanto do Menino na manjedoura? Onde está o
bem-aventurado silêncio da noite santa?
O
mistério da noite de Natal escreve Edith Stein, carrega uma verdade
grave e séria que o encanto da manjedoura não deve encobrir aos
nossos olhos: "O
mistério da encarnação e o mistério do mal estão intimamente
unidos".
A alegria do Menino e das figuras luminosas que se ajoelham em torno
da manjedoura, das crianças inocentes, dos pastores esperançosos,
dos reis humildes, dos mártires, dos discípulos, dos homens de boa
vontade que seguem o chamado do Senhor, essa alegria, enfim, caminha
de mãos dadas com a constatação de que nem todos os homens são de
boa vontade; de que a paz não alcança "os filhos das trevas";
de que, para esses, o Príncipe da Paz "traz a espada"; de
que, para esses, Ele é a "pedra de tropeço" que os
derruba. Aquele Menino divide e separa, porque, enquanto o
contemplamos, Ele nos impõe uma escolha: "Segue- me". Ele
a impõe a nós também, hoje, e nos coloca diante da decisão entre
a luz e a escuridão. As mãos do Menino "dão e exigem ao mesmo
tempo".
Se
colocarmos as nossas mãos nas do Menino Deus e respondermos "sim"
ao seu "Segue-me", o que recebemos?
"Oh,
maravilhoso intercâmbio! O Criador da humanidade nos dá, assumindo
um corpo, a sua divindade!".
Aqui reside a grandeza do mistério da Encarnação: quem escolhe a
luz, quem fica do lado do Menino, "abre
caminho para que a sua vida divina se derrame sobre nós" e traz
"de forma invisível o Reino de Deus dentro de si".
O Natal é o começo da aventura de deixar a graça "permear
de vida divina toda a vida humana".
Por que Deus se fez homem? Deus se tornou um filho do homem para que
os homens se tornem filhos de Deus. Escreve Edith Stein: "Um
de nós tinha rasgado o vínculo da filiação divina; um de nós
tinha que reatá-lo e pagar pelo pecado. Mas nenhum descendente da
antiga progênie, doente e bastarda, tinha condições de fazê-lo.
Era preciso enxertar-lhe um ramo novo, saudável e nobre".
Estas palavras de Edith Stein evocam, por analogia óbvia, uma
passagem do "Cur Deus Homo", de Santo Anselmo, que contém
a mesma lógica da redenção: "a restauração da natureza
humana não teria acontecido se o homem não tivesse pagado a Deus o
que lhe devia pelo pecado. Mas a dívida era tão grande que a
satisfação, de obrigação apenas do homem, mas possível somente a
Deus, precisava ser dada por um homem-Deus" (CDH 2,6).
Edith
Stein tinha aprendido, na escola dos professores do carmelo, Teresa
de Ávila e João da Cruz em particular, que a graça se desenvolve
em nós como uma semente que nos transforma, deixando-nos participar
da própria vida de Deus. Por esta razão, a meditação seguinte
insiste nos sinais fundamentais de uma vida humana unida a Deus.
O
primeiro sinal da filiação divina é "ser
um só com Deus".
O Menino desceu ao mundo para ser um "corpo misterioso"
conosco: "ele
é a nossa cabeça, nós os seus membros".
Não existimos mais "um
ao lado do outro, como pessoas isoladas, autônomas, e sim, todos
juntos, como uma só coisa com Cristo".
O segundo sinal da filiação divina é "ser
um só em Deus":
"Se, no
corpo místico, Cristo é o corpo e nós os membros, então somos
membros uns dos outros e, todos juntos, somos um só em Deus".
A medida do nosso amor a Deus é o nosso amor para com o próximo,
"seja
parente ou não, seja-nos simpático ou não, seja moralmente digno
da nossa ajuda ou não; quem ama com o amor de Cristo, ama a
humanidade por Deus e não por si".
O terceiro sinal da filiação divina é a disponibilidade para
aceitar qualquer coisa da mão de Deus: o "faça-se
a tua vontade!",
em toda a sua extensão, deve ser o critério da vida cristã. Ele
deve permear a jornada da manhã até a noite, o curso do ano e de
toda a vida. "Deve
ser a única preocupação do cristão. Todas as outras o Senhor toma
para si".
À
luz e ao calor da noite santa, quando mal começamos a nos confiar ao
Menino, apertamos confiantes a sua mão e vemos com clareza o que
devemos fazer ou não fazer. Mas a situação não ficará assim para
sempre. Quem vê o encanto do Menino na noite santa não pode fingir
que não percebe que o caminho que parte de Belém conduz ao Gólgota,
vai da manjedoura até a cruz. "Quem
pertence a Cristo deve viver toda a sua vida".
A noite de Natal e a noite da cruz são uma única noite. Chegará o
tempo do sofrimento e da morte para cada homem. Quando ele vier, a
confiança em Deus permanecerá firme? Estaremos dispostos a aceitar
qualquer coisa da sua mão? Seremos ainda capazes de dizer "faça-se
a tua vontade",
mesmo na "noite escura", quando a luz divina já não
brilhar e a voz do Senhor silenciar? Os mistérios do cristianismo
são um todo indivisível. Quem se aprofunda em um, acaba por tocar
os outros todos, escreve Edith Stein. Sobre o luminoso esplendor da
manjedoura paira a sombra da cruz. A luz da noite santa se apaga na
escuridão da Sexta-feira Santa, mas volta a brilhar mais forte na
manhã da ressurreição. O Filho encarnado de Deus, através da cruz
e da paixão, chega até a glória da ressurreição. É assim que
cada homem deve sofrer e morrer. Se for um membro vivo do Corpo de
Cristo, porém, o seu sofrimento e a sua morte se tornarão, graças
à divindade da Cabeça do corpo, redentores: "Cada
um de nós, toda a humanidade, chegará, com o filho do homem,
através do sofrimento e da morte, até a mesma glória".
E o Salvador, sabendo que somos homens em luta diária com as nossas
fraquezas, vem em nosso auxílio com aqueles que Edith Stein chamava
de "meios
de salvação":
"estar todos os dias em relação com Deus" através da
escuta da Palavra, da oração litúrgica e interior, da vida
sacramental. Mas é principalmente para o "Salvador
eucarístico"
que precisamos abrir espaço, para podermos transformar a nossa vida
na dele. Assim como o corpo terreno precisa do pão de cada dia,
assim também a vida divina aspira em nós a ser alimentada
continuamente: "Em
quem realmente faz dele o seu pão de cada dia, cumpre-se diariamente
o mistério do Natal, a encarnação do Verbo".
E esta é, sem dúvida, a maneira mais segura de manter ininterrupta
a união com Deus e de enraizar-se todos os dias e cada vez mais
firmemente no corpo místico de Cristo.
Edith
Stein escreveu vinte páginas de meditação sobre o Natal,
densíssimas, para lembrar que os mistérios do cristianismo são um
todo indivisível, porque todos são mistérios portadores de
salvação. Encarnação, cruz e ressurreição são inseparáveis.
Só porque verdadeiramente o Filho, e nele o próprio Deus, "se
fez carne",
é que Ele poderia morrer e ressuscitar, arrebatando-nos da morte e
nos abrindo um futuro em que esta "carne", a nossa
existência terrena, entrará na eternidade do Reino de Deus.
Celebramos o Natal como um convite a nos deixar transformar por
Aquele que entrou em nossa carne, que se uniu a nós e nos uniu a si,
para permear de vida divina toda a vida humana.
Que
o mistério da noite de Natal nos lembre que algo extraordinário
acontece mediante a encarnação: a carne se torna o instrumento da
salvação.
"Verbum
caro factum est":
o Verbo se fez carne, escreve João Evangelista, e um autor cristão
do século III, Tertuliano, afirma: "Caro
salutis est cardo",
a carne é o eixo da salvação. "Se
a alma se torna totalmente de Deus, é a carne que o torna possível!
A carne é batizada para que a alma seja purificada; a carne é
ungida para que a alma seja consagrada; a carne é marcada pela cruz
para que a alma fique incólume; a carne é coberta pela imposição
das mãos para que a alma seja iluminada pelo Espírito; a carne se
nutre do Corpo e do Sangue de Cristo para que a alma se sacie de
Deus. Elas não serão, pois, separadas no dia da recompensa, porque
estiveram unidas durante as obras"
(De carnis resurrectione, 8,3: PL 2,806).
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