por Frei Miguel
Negreiros, OFMCap
(in “Cadernos de
Espiritualidade Franciscana”, nº 6, pp. 17-26)
Se é verdade que falar em
Franciscanismo é falar em São Francisco, assim como falar em
Cristianismo é falar em Jesus Cristo, também é verdade que há uma
história do Franciscanismo, para além da pessoa de São Francisco.
Foi-me pedido que tratasse do 1º século da história do
Franciscanismo. Vou dividir a minha exposição em três partes:
antes, durante e depois de São Boaventura. A primeira parte abrange
o período que vai da simples fraternidade primitiva até à
estruturação da Ordem. A segunda parte coincide com o generalato de
São Boaventura. A terceira compreende o tempo que se segue até à
ruptura dos "Espirituais".
1 - DA SIMPLES FRATERNIDADE
À ESTRUTURAÇÃO DA ORDEM
Por influência dos Ministros
e dos Irmãos letrados, bem como dos privilégios concedidos pela
Santa Sé, a Ordem Franciscana, logo após a morte de São Francisco,
entrou numa fase de forte organização interna que já não se
compadecia com a simplicidade da vida inicial. No ano seguinte à
morte de São Francisco, no Capítulo de 1227, foi eleito Geral o
Ministro Provincial de Espanha, Frei João Parente, que procurou
harmonizar a fidelidade ao genuíno espírito de São Francisco com
as aspirações e reivindicações dos letrados. Muitos irmãos se
assustaram com as mudanças e o encaminhamento da Ordem que tendia
para uma clericalização e isenção da mesma, frente à hierarquia.
Cresceu entre eles o temor de infidelidade à Regra de São
Francisco. É que os irmãos inovadores pretendiam uma interpretação
da Regra, sancionada pela autoridade da Igreja, a fim de a melhor
compreender e observar. Não compreendiam em que medida estavam
"obrigados" a observar o Evangelho, e como era possível
compaginar a pobreza absoluta com a necessidade de possuir alguns
bens imprescindíveis para o progresso da Ordem. Para este progresso,
os letrados esbarravam com duas dificuldades: o Testamento de São
Francisco e a oposição secular. É nesta altura que aparece a Bula
"Quo Elongati" de Gregório IX, em 1230, como primeira
Declaração Pontifícia da Regra. Esta Bula deixou a muitos irmãos
desapontados por lhes parecer que estavam a desviar-se da
simplicidade do ideal evangélico, tal como São Francisco o tinha
consignado na Regra e exposto no Testamento. A Bula, com efeito,
declarava que o Testamento não tinha força obrigatória; os Irmãos
só estavam obrigados aos conselhos evangélicos expressos na Regra;
podiam recorrer aos "amigos Espirituais"; os Irmãos apenas
tinham o simples "uso de facto". No ano seguinte a Bula
"Nimis iniqua" declara a isenção dos irmãos da
jurisdição episcopal.
1.1. A evolução
incrementada por Frei Elias
Frei João Parente não foi
capaz de conter as exigências revolucionárias dos Ministros e
letrados, e veio a suceder-lhe de novo Frei Elias, no Capítulo Geral
de 1232. Frei Elias exerceu uma influência decisiva na evolução da
Ordem. Muito contestado pelos zelosos observantes da Regra, conseguiu
instaurar os estudos e organizar as Missões do Oriente. Empenhou-se
em estruturar e engrandecer a Ordem para que esta pudesse rivalizar
com as outras grandes Ordens, particularmente com a Beneditina.
Decidiu apresentar à Igreja e ao mundo um São Francisco nimbado de
glória, e levantou-lhe uma grande Basílica. Para este projeto não
teve dificuldade em conseguir toda a espécie de apoios. O próprio
Gregório IX, que era, aliás, um grande amigo pessoal e admirador de
São Francisco, apadrinhava este empreendimento. Pelo seu carácter
absorvente e centralizador, provocou o descontentamento de muitos
Provinciais que logo trataram de depô-lo no Capítulo seguinte.
Assim, no Capítulo Geral de 1239 foi eleito, em vez de Frei Elias, o
Provincial de Inglaterra, Frei Alberto de Pisa. Para obviar aos
inconvenientes do absolutismo de Frei Elias, promulgaram-se as
primeiras "Constituições" que regulavam a vida dos
Irmãos, especialmente dos Irmãos Ministros, e concretamente do
Irmão Ministro Geral. Os Capítulos passam a ser a autoridade máxima
da Ordem. Em termos de hoje poderíamos dizer que se repôs o
espírito democrático. Poucos meses depois, morre Frei Alberto de
Pisa e sucede-lhe um mestre da Universidade de Paris, Frei Haymón de
Faversham que havia sido a alma do Capítulo de 1239. Foi um
verdadeiro precursor de São Boaventura e soube valer-se das
experiências positivas dos Irmãos de São Domingos, como por
exemplo, no que se refere ao Capítulo dos "definidores".
1.2. - Consequências desta
primeira evolução
O movimento de renovação e
atualização da Ordem, desencadeado pelos inovadores e apoiado por
Frei Elias, fez com que a Ordem se tornasse na primeira força
religiosa da Igreja, respaldada pela proteção dos Papas. Ficavam
para trás, como saudosas recordações, as experiências heroicas da
aventura evangélica dos primeiros companheiros. À simplicidade
austera dos primeiros tugúrios verdadeiramente pobrezinhos, e à
espontaneidade das relações fraternas dos primeiros irmãos,
sucedia-se a centralização nas grandes cidades, com espaçosos
conventos. À pobreza, cheia de confiança na Divina Providência, à
semelhança das aves do céu e dos lírios dos campos (Mt 6, 25 ss)
sucedia a preocupação de obter meios mais estáveis de vida. A
organização dos estudos transformou-se numa fortaleza académica. A
esmola perde o significado primitivo e substitui o trabalho manual
como meio normal de subsistência. Os trabalhos mais humildes são
entregues a criados seculares. O regime interno da Ordem adopta o
estilo da vida monástica, e entra-se numa administração cada vez
mais necessitada de novas justificações jurídicas para poder
dispor de dinheiro.
1.3. - A Bula "Ordinem
Vestrum"
De novo recorrem ao Papa e
obtém de Inocêncio IV a Bula "Ordinem Vestrum" (1245) que
permite o recurso aos "amigos espirituais" para as diversas
transações pecuniárias e declara que os bens da Ordem são por
direito propriedade da Santa Sé, que os administra através de um
"procurador". O breve "Quanto Studiosius" que
veio pouco depois, alargava mais o poder dos Provinciais em ordem à
administração dos bens, através de "homens de confiança"
nomeados por eles. O preceito da Regra que dizia "os Irmãos de
nada se apropriem" que para São Francisco tinha um sentido
nitidamente evangélico, passa a ser interpretado só juridicamente,
transformando a pobreza real numa pobreza legal. Com a distinção
entre direito de propriedade e simples uso de fato ficava ressalvada
a pobreza à face da Lei, mas a Dama Pobreza corria o risco de ser
ultrajada com o pecado da infidelidade. Viviam ainda alguns dos
primeiros companheiros de São Francisco e a própria Santa Clara que
continuamente recordavam a heroicidade da pobreza dos primeiros anos.
Gerou-se,
então, um movimento de irmãos que reclamavam o direito de viver
"espiritualmente" a Regra e por isso se denominaram
"Espirituais".
Não viam possibilidade de conciliar a fidelidade genuína à Regra
com as concessões das Bulas Papais. Ao mesmo tempo, outros irmãos
também queriam ser fiéis a São Francisco e à sua Regra, embora
aceitando a evolução que consideravam irreversível e a orientação
oficial da Ordem. Estes
constituíram o grupo chamado da "Comunidade", que
funcionavam a modos de uma ala esquerda em confrontação com a ala
de extrema direita dos "Espirituais".
1.4. - A Política de
Centro ou a Via Intermédia de Crescêncio de Lesi (1244-47)
O Ministro Geral que se segue,
Crescêncio de Lesi, de novo recorre à Bula Papal "Ordinem
Vestrum" a que já fizemos referência, o que veio a desgostar
tanto os "Espirituais" como grande parte dos da
"Comunidade". A sua preocupação de manter o meio termo
entre uns e outros desgostou, sobretudo os inovadores. Deu-se conta
de que a memória de São Francisco ainda era catalizadora e
mobilizadora da vocação de todos os irmãos e por isso encarregou
Tomás de Celano de escrever uma Segunda Vida de São Francisco que
recolhesse todos os dados referentes à vida do Santo Fundador. Tomás
de Celano escreveu esta Segunda Vida com preocupações de
pacificação e de crítica aos exageros de ambas as partes. Apesar
de tudo isto este Geral não conseguiu restabelecer a paz. Vai-lhe
suceder João de Parma.
1.5. - O Regresso às
Origens (fontes) com João de Parma (1247-57)
João de Parma, eleito no
Capítulo Geral de Lião, foi bem recebido por todos, dado o seu
prestígio de homem de ciência e de virtude. No
seu governo privilegiou o exemplo e a virtude mais do que a ciência.
Dele disse Frei Gil: "chegaste
em boa hora mas já vens tarde".
Tudo fez para
se retomar o fervor primitivo e garantir a fidelidade às antigas
tradições.
Não fez caso das concessões das Bulas Papais. Na
luta contra os inimigos de fora aconselhava humildade e mansidão.
Insistia na
observância da Regra e do Testamento.
Embora bem aceite por todos, havia alguns descontentes, por lhes
parecer que a Ordem assim não avançava. Acabou por renunciar,
também por indicação do Papa Alexandre IV, retirando-se para o
eremitério de Greccio, mas recomendou que elegessem para Geral a
Boaventura de Bagnoregio, que então era Mestre em Paris.
2 - A ORDEM DURANTE O
GENERALATO DE SÃO BOAVENTURA (1257-74)
Não falta quem considere São
Boaventura um "Segundo Fundador". E há até quem o acuse
de ter desvirtuado a obra de São Francisco. Na verdade, não foi nem
uma coisa nem outra. Aceitou a Ordem na sua evolução normal e
procurou dinamizá-la com a observância comum da Regra.
2.1. - A Ordem em conflito
com algumas forças da Igreja
São Francisco havia ensinado
que os Irmãos Menores deviam ser sempre submissos aos Bispos e aos
sacerdotes. Bastantes destes, porém, desde o princípio que não
viam com bons olhos a autorização concedida pelos Papas aos
Franciscanos de exercerem a cura de almas, a ponto de o Papa Gregório
IX ter saído em sua defesa. A própria Universidade de Paris se
ergueu como adversário da Ordem porque os mestres seculares de
Sorbona, capitaneados por Guilherme de Saint'Amour, não queriam
aceitar os Dominicanos e Franciscanos como Catedráticos na
Universidade. Negavam aos mendicantes o direito de professar a santa
pobreza (ensinavam que a mendicância era contrária ao Evangelho), o
direito de exercer o ministério pastoral e até o direito de
existirem. São Boaventura saiu em defesa da Ordem com os seus dois
Tratados:
a) Questões de perfeição
evangélica" e,
b) "Apologia dos
pobres".
Nos quais estabelece os
seguintes princípios:
1. A pobreza voluntária é
o mais alto grau de perfeição evangélica.
2. Têm direito a pregar e
a ensinar o Evangelho, sobretudo àqueles que o praticam.
3. A pregação é um
direito que os irmãos receberam do Papa que é o primeiro pastor
próprio de todos os fiéis.
4. Os irmãos têm o
direito a viver do Evangelho, isto é, têm direito a mendigar.
2.2. - O Governo Interno da
Ordem
Além dos adversários
externos, São Boaventura teve de enfrentar outros inimigos, talvez
mais fáceis, que se encontravam dentro da Ordem: o movimento dos
"Espirituais". Procurou fazer ver a estes que a fiel
observância espiritual da Regra - da qual ele por sinal era modelo -
era compatível com a evolução da Ordem. Durante o seu generalato
adoptou os seguintes critérios que apresentou como orientações dos
irmãos:
1. Os Irmãos podem ficar
tranquilos com a interpretação da Regra feita pelo Papa, porque
este é o pastor supremo da Igreja e da Ordem.
2. São Francisco é o modelo
para todos, é a forma dos menores. E por isso ele escreveu a Legenda
Maior como biografia oficial da Ordem, apresentando São Francisco
como cópia fiel de Cristo crucificado. Afasta-se, no entanto, dos
"Espirituais" na interpretação do ideal de minoridade,
nomeadamente no que se refere ao trabalho, à insegurança
evangélica, ao receio dos estudos, à espontaneidade, etc.
3. A observância regular deve
antes de mais ser fiel ao espírito de pobreza que é a maior glória
e a principal característica da Ordem. Não foi favorável às
mitigações das Bulas Pontifícias, embora aceitando os
"procuradores" da Santa Sé. Foi rigoroso em não aceitar
dinheiro, mas permitiu algumas discretas provisões de esmolas. Os
conventos grandes deviam estar nas cidades.
4. Os estudos e a ciência são
necessários aos franciscanos como condição de preparação para
poderem pregar.
5. A ação apostólica faz
parte essencial da Ordem. Devem-se estabelecer acordos com os Bispos
e os párocos, em espírito de minoridade.
6. Só se devem aceitar, no
campo do apostolado, os privilégios concedidos a toda a Ordem e não
os concedidos a favor de uma Província ou de um religioso.
7. A legislação das
Constituições de Narbona, promulgadas no Capítulo Geral de 1260,
nada de novo introduzem na vida interna dos Irmãos. O Capítulo
Geral continua a ser a máxima autoridade da Ordem.
8. O "Joaquinismo"
(Doutrina de Joaquim di Fiore, que um pouco mais à frente
explicaremos) foi implacavelmente reprimido.
São Boaventura, durante os 17
anos do seu governo, foi aceite praticamente por todos, devido ao
prestígio do seu saber e da sua virtude. Soube harmonizar, com muito
tato e equilíbrio, o amor a São Francisco e ao progresso da Ordem;
o apreço pelos eremitérios retirados e a aceitação dos grandes
conventos nas cidades. Sob a sua orientação, a Ordem sentiu-se
internamente segura, exteriormente admirada, e muito apreciada pela
Santa Sé que lhe confiava missões importantes.
2.3. - Nova Luta e Nova
Defesa da Ordem pela Santa Sé
São Boaventura participou na
preparação do Segundo Concílio de Lião e veio a falecer, já
Cardeal, durante o mesmo Concílio. Vários padres conciliares
propuseram a supressão de todas as Ordens aparecidas após o IV
Concílio de Latrão. O Papa Gregório X respondia-lhes: "Vivei
como eles vivem, estudai como eles estudam e obtereis os mesmos
resultados".
Entretanto, após a morte de
São Boaventura, sucederam-lhe Jerónimo de Ascoli e Bonagrazia de
São João. A pedido do Geral, o Papa Nicolau III interveio em defesa
da Ordem com a Bula "Exiit qui seminat" (1279), retomando
toda a argumentação de São Boaventura, pondo em destaque a
distinção entre uso de direito e uso de fato. O "uso de fato"
é o único permitido e tem de ser um uso pobre. O Sumo Pontífice
proibia severamente que alguém falasse ou escrevesse contra os
Menores e a sua Regra. Foram depois permitidos os "síndicos
apostólicos" como procuradores seculares dos religiosos. Assim
uma vez mais se solucionava juridicamente o problema da fidelidade à
pobreza.
2.4. - A Discussão à
volta dos Privilégios
O Padre Geral Bonagrazia, que
tinha obtido do Papa a Bula de defesa da Ordem, recomendava aos seus
frades que evitassem toda a polémica com o clero secular. A
discussão agora se travava acerca dos privilégios concedidos pelos
Papas que autorizavam os Franciscanos a confessar e a pregar, sem
necessidade de licença dos Bispos ou dos párocos. Os Bispos
Franceses uniram-se para contestar, com decisão e firmeza, os
privilégios concedidos pelas Bulas Pontifícias de Martinho IV
(1281-85), Honório IV (128587) e Nicolau IV (que tinha sido o Geral
que sucedeu a São Boaventura). Bonifácio VIII (1294-1303) com a
Bula "Supra Cathedram" procurou determinar sabiamente a
relação entre os frades e o clero secular. Os frades, porém,
entenderam que tinham sido prejudicados. Sucedeu-lhe Bento XI
(1303-04) que de novo foi mais favorável aos religiosos. Isto
suscitou nova contenda na qual tomou parte o célebre João Duns
Escoto, a defender a posição do Papa. Veio pouco depois o Concílio
de Viena (1311-12), em que ficou definida a isenção dos religiosos.
Internamente estes apenas devem obediência ao Papa. Enquanto à
atividade apostólica fora das suas Igrejas, dependerão dos Bispos e
dos sacerdotes seculares.
3 - A QUESTÃO DOS
ESPIRITUAIS
3.1. - A influência do
Joaquinismo
Após a morte de São
Boaventura, estalou violentamente a questão dos "Espirituais"
que transpôs o limiar das fronteiras do franciscanismo para se
transformar num fenómeno de âmbito eclesial. A primeira
confrontação dos religiosos zelantes contra os da "Comunidade"
já se tinha verificado durante o governo de Crescêncio de Lesi,
vindo progressivamente a avolumar-se até que atingiu proporções de
autêntica insurreição, de separação da Ordem e de rebelião
contra a Sé Apostólica. A Fundamentação teológica da corrente
dos Espirituais encontra-se, de certo modo, na concepção
escatológica do Abade Joaquim de Fiore
(+ 1202), segundo o qual a história da salvação divide-se em três
épocas: a do
Pai, a do Filho e a do Espírito Santo.
A primeira, a do Pai, que vai de Adão a Cristo, é dirigida pela
ordem dos casados ("Ordo conjugatorum"). A segunda, a do
Filho, que vai desde Cristo até ao tempo do autor, é dirigida pela
ordem dos clérigos ("Ordo clericorum"). A terceira, a do
Espírito Santo, deve ser dirigida pela ordem dos monges ("Ordo
monachorum"). O Pai impôs a Lei pelo temor. O Filho escolheu a
disciplina porque é sabedoria. O Espírito Santo desencadeou a
liberdade porque é amor. Com esta terceira etapa foi superada e
ultrapassada a igreja da hierarquia, com os seus sacramentos e as
suas leis, e foi instaurada a Igreja espiritual: assembleia de
alegria, de amor e de liberdade, composta por homens espirituais,
pobres e menores, verdadeiros modelos de vida cristã que terão por
pastor e guia um Santo Padre, o Pontífice Angélico. Esta etapa será
anunciada pela aparição do "Anjo do Sexto Selo" que
ostentará "o sinal do Deus vivo" e será portador do
Evangelho eterno para todos os povos. Estas ideias penetraram dentro
da ala direita da Ordem Franciscana através do livro "Introdução
ao Evangelho Eterno" de Gerardo de Borgo San Donnino (+ 1276).
Muitos dos "Espirituais" viram em São Francisco o "Anjo
do Sexto Selo", assinalado com os estigmas e portador do
"Evangelho eterno", que seria a Regra. Entenderam que os
franciscanos seriam esses "homens espirituais" destinados a
instaurarem a nova ordem, e a nova Igreja espiritual, sob o sinal da
pobreza. Os "Espirituais" passam agora a ser os que,
pertencendo à Igreja espiritual, se opõem à hierarquia, adquirindo
assim esta denominação um novo sentido.
3.2. - As principais
figuras dos Espirituais
Durante o Concílio de Lião,
surgiu na Província das Marcas um movimento que hoje chamaríamos de
“Objetores de Consciência” que preconizava a desobediência ao
Papa, por julgarem que este ia obrigar os franciscanos a possuir bens
em comum. Entre os rebeldes destacaram-se Pedro de Macerata (+ 1307)
e o famoso Ângelo Clareno (+ 1337). Outra campanha dos Espirituais
desencadeou-se na região da Provença, e teve como principal corifeu
Pedro João Olivi (+ 1298), teólogo eminente e tido por santo. Foi o
verdadeiro chefe ideológico do movimento revolucionário. Opunha-se,
sobretudo, à doutrina do "uso pobre" da Bula "Exiit
qui seminal". O Papa Nicolau IV, juntamente com o Geral Mateus
de Acquasparta procedeu duramente contra eles. Mas quando foi eleito
Celestino V (1287-89), que era um santo monge, viram nele o "Papa
Angélico" das profecias de Joaquim di Fiore e sentiram-se
protegidos por ele. Veio logo a seguir Bonifácio VIII que excomungou
Ângelo Clareno e demitiu o Geral Gaufredi (1289-95) que os protegia.
Nos ataques contra o Papa distinguiu-se outro grande chefe dos
Espirituais, da região da Toscana, Ubertino de Casale (+ 1329) homem
douto e contemplativo mas também algo visionário, que pregava
contra a "Igreja carnal".
3.3. - Nova discussão e a
Bula "Exivi" (1309-12)
Clemente V (1305-14) quis ser
mais suave que Bonifácio VIII e foi condescendente para com os
Espirituais. Nomeou uma comissão de Cardeais para levar a cabo uma
investigação imparcial. Foram convocados religiosos representantes
das duas facções. A princípio, parecia que tudo seria favorável
aos Espirituais, mas foram os da Comunidade que ao fim viram
reconhecidas as suas razões. A Bula "Exivi de Paradiso"
(1312) estabelece o grau de obrigatoriedade de cada um dos preceitos
da Regra. Nela haveria 27 preceitos graves; doze exortações; seis
conselhos e doze condições para admissão de noviços. A intenção
era de sossegar as consciências. Mas não foi possível evitar a
separação.
3.4. - Ruptura (1312-18)
O Papa tudo fez para pacificar
a Ordem e tomou a seu cuidado a proteção dos Espirituais. O próprio
Geral esforçou-se por corrigir todos os abusos contra a pobreza e
demitiu todos os superiores que haviam sido demasiado duros para com
os Espirituais. Tudo foi inútil. Era demasiado profundo o fosso
cavado entre os dois grupos. Em vários sítios apareceram
comunidades cismáticas dos Espirituais, particularmente na Toscana,
na Sicília e na Provença. Bastantes deles foram encarcerados e
outros excomungados por João XXII, que com a Bula "Sancta
Romana" (1317) condenava os Espirituais de qualquer denominação.
Não faltaram sequer as prisões perpétuas e as condenações à
fogueira. Ubertino de Casale passou a viver com os Beneditinos mas
quis conservar-se franciscano até à morte. Ângelo Clareno,
refugiado no monte Subiaco constituiu-se Geral dos "Irmãos de
vida pobre" (Fraticelli della povera vita). No seu livro
"Apologia pro Vita sua", faz a sua declaração de amor à
Regra de São Francisco e de fé na Igreja, a quem se sente unido
pelo Espírito Santo, embora condenado pela autoridade hierárquica.
Tanto Ângelo Clareno como Ubertino de Casale quiseram ser
reformadores autónomos e legitimamente reconhecidos, não o tendo,
porém, conseguido. Os Clarenos, continuadores dos "fraticelli"
aceitaram os Visitadores apostólicos enviados por Martinho V, São
João Capistrano e Santiago da Marta. Vieram mais tarde a
reconciliar-se com a Igreja sob os pontificados de Eugénio IV
(1413-17) e de Sixto IV, que em 1473 os colocou sob a obediência do
Ministro Geral da Ordem. Em 1517 integraram-se totalmente nos Irmãos
da "Observância".
CONCLUSÃO
O último decénio da vida de
São Francisco já tinha sido decisivo para a fisionomia da nova
Ordem, mas não há dúvida que foi o primeiro século que se lhe
seguiu que acabou por dar à Ordem uma organização mais
estruturada.
A caminhada foi árdua e
difícil. A tensão, que já no tempo de São Francisco tinha
aflorado entre as exigências dos irmãos letrados e a simplicidade
dos primeiros companheiros agravou-se após a morte de São
Francisco, por causa da interpretação da Regra e da observância da
pobreza. A luta entre os "Espirituais" e os da "Comunidade"
que trouxe à Ordem muitos dissabores e deserções, foi providencial
para se clarificar, à luz do magistério da Igreja, qual o rumo que
a Ordem devia seguir.
Era urgente discernir qual era
o verdadeiro espírito da Regra e nomeadamente o da pobreza. Foi o
que se conseguiu com sangue suor e lágrimas! A luta travada naquele
primeiro, século vai agora prolongar-se nos séculos seguintes,
pelos mesmos motivos, entre os Irmãos da "Observância" e
os Irmãos "Conventuais", aos quais se virão juntar, já
no século XVI, os Irmãos "Capuchinhos".
-x-x-x-x-x-
REFLEXÕES:
São Francisco e a Irmã Pobreza
- São Francisco de Assis (1182-1226), fundador da ordem franciscana, que ele nunca teve a intenção de fundar uma ordem de estudiosos, catedráticos, doutores ou intelectuais. Ele apenas acolhia aqueles que desejavam viver como ele, isto é, viver segundo o Evangelho. Francisco apresentava um ideal de vida, uma ideia de comunidade voltada para a prática da caridade, da pregação da palavra divina, ou seja, um ideal de vida itinerante marcado pela pobreza material, um estilo de vida semelhante à vida de Cristo, dos Apóstolos e dos primeiros cristãos.
NOTA:
DE BONI, Luis
Alberto. De Abelardo a Lutero: estudos sobre filosofia prática na
Idade Média. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2003. p. 216. (COLEMAN, Janet. A History of
Political Thought. From the Middle Ages to the Renaissance. Oxford:
Blackwell Publishers, 2000.. p.
77).
- Francisco de Assis foi um homem profundamente evangélico e não um intelectual, nem propôs o saber como missão essencial de evangelização para seus membros. Mas soube imprimir tal dinamismo espiritual e evangélico em seus seguidores que foi capaz de criar um estilo peculiar de viver, de habitar no mundo e de interpretar a própria vida e o que acontece nela e, a partir daí, a elaboração de um sistema filosófico-teológico característico da família franciscana.
NOTA:
MERINO, Jose
Antonio. Historia de la filosofia franciscana. Madrid: BAC, 1993. p.
17.
- A Ordem dos Frades Pregadores (Ordo Fratum Praedicatorum), mais tarde conhecida como Ordem Dominicana, foi fundada por Domingos de Gusmão (1170-1221), por volta do ano de 1215. O principal objetivo dessa ordem era o combate das heresias através da pregação. Nesse sentido, “para ser bem sucedido na pregação, Domingos pensou que seria vital ser visto como um exemplo por viver uma vida simples, na perfeição apostólica”.
NOTA-1:
Cf. FRAILE,
Guillermo; URDAÑOZ, Teofilo. Historia de la filosofía. Filosofía
judía y musulmana. Alta
escolástica: desarrollo y decadencia. Madrid: BAC, 1986. p. 224.
NOTA-2:
“To succeed in preaching, Dominic thought it vital to be seen as
setting an example by living a simple, more apostolic life than that
of the church’s ecclesiastical dignitaries” (COLEMAN, 2000, p.
78)
- O problema da pobreza surgiu no ocidente medieval a partir do século XIII e tem como ponto principal a polêmica da relação de Nosso Senhor Jesus Cristo e dos apóstolos com a propriedade. De modo geral, os franciscanos viam São Francisco de Assis, o fundador da ordem, como um homem que via a pobreza como a maior de todas as virtudes. Assim sendo, ele pregava um modo de vida simples, sem ostentação, e, por isso, cada frade deveria viver somente do necessário para a sobrevivência do corpo. As acomodações deveriam ser o mais simples possível. A Regra Bulada dos franciscanos afirma que “os irmãos não devem se apropriar de nada, nem de casa, nem de lugar, nem de coisa alguma”.
NOTA:
Cf. Regra
Bulada, capítulo VI: “fratres nihil sibi approprient ne domum nec
locum nec aliquam rem”. In. FONTES franciscanas e clarianas.
Tradução de Celso Márcio Teixeira (et alii), 2. ed. RJ: Vozes,
2008. p. 161.
- A contenda acerca da vida de pobreza não foi um tema incômodo somente para as ordens mendicantes – franciscanos e dominicanos –, todavia, também inquietou as autoridades eclesiásticas, sumos pontífices, religiosos e leigos.
NOTA:
Cf. DE BONI,
2003, p. 244s.
- Do amor à santa Pobreza surgiu a controvérsia sobre o verdadeiro valor e a posição real do homem na sociedade, questionados pela proposta de São Francisco. Para os franciscanos do século XIII – e o mesmo também pode ser válido para os tempos atuais –, a contenda acerca da pobreza era um questionamento sobre a sociedade e as suas instituições, muito mais simples e muito mais profundo do que se pode imaginar, a saber, é possível outra sociedade e outra economia?
NOTA:
Cf BÓRMIDA,
Jerónimo. No-propiedad: una propuesta de los franciscanos del siglo
XIV. Montevideo: Editorial Misiones Franciscanas, 1996, p. 11.
- As controvérsias de longa duração sobre a pobreza franciscana – entre 1250 e 1340 – despertaram muitas questões. A ideia franciscana de pobreza sem quaisquer direitos de propriedade ou posição legal provocou o debate sobre os direitos do indivíduo à propriedade e à subsistência. A análise dessas contendas oferece, entre outros elementos, uma ampla perspectiva sobre como a terminologia dos direitos naturais se desenvolveu no final do século XIII e no início do século XIV.
NOTA:
Cf BÓRMIDA,
Jerónimo. No-propiedad: una propuesta de los franciscanos del siglo
XIV. Montevideo: Editorial Misiones Franciscanas, 1996, p. 11.
- A pobreza evangélica segundo Francisco de Assis é a busca da pobreza visando se despojar de si para estar mais aberto ao Pai. Receber tudo, não possuir nada: é assim que poderíamos resumir a regra de São Francisco. E, sobretudo, não ter a tentação de possuir o que se recebeu. Retomar incessantemente esse trabalho de despojamento. A lição é simples: não é bom ser pobre ou doente – a doença causa sofrimento, e o próprio Francisco não escondeu no final da sua vida que sofria muito –, mas quando se é pobre ou se está doente, torna-se dependente do amor dos outros. A pobreza tem um valor pedagógico: ela proporciona que o homem se dê conta de que não é autossuficiente, tentação do orgulho e do egoísmo, mas que é, ao contrário, feito para amar e ser amado. A pobreza de Francisco é, portanto, uma pobreza voluntária ou, pelo menos, aceita. A pobreza que não é voluntária é um grande sofrimento; ela pode destruir. É por esta razão que é preciso libertar aqueles que de alguma forma são escravos. Francisco sempre coloca os pobres “reais”, isto é, as vítimas da miséria ou da doença, na frente dele. E se ele jejua é, em primeiro lugar, para compartilhar o pão. Entre os discípulos de Francisco, a preocupação com os pobres é constante. A caridade sempre fez parte da vida dos franciscanos, religiosos ou leigos. No doente, vítima por excelência, uma vez que é sempre inocente da doença que se sofre, o franciscano reconhece o Cristo sofredor, vítima também ele. Mas, para ser voluntária, esta pobreza não deve transformar-se numa corrida para a miséria, da qual se pretende ser o campeão. São Boaventura denunciou este tipo de expertise da pobreza em alguns de seus frades. Em seu testamento, Francisco menciona especificamente o hábito próprio dos frades, um hábito rústico, remendado o quanto for possível, uma túnica de trabalhador ou de camponês. Humilde, mas suficiente. Porque a verdadeira pobreza não está nos extremos; a pobreza do corpo é apenas um instrumento; a verdadeira pobreza está na atitude interior que consiste em receber de Deus, dia a dia, o que ele concede ou não, mesmo o inesperado. Acolhido um dia, rejeitado no dia seguinte. E não olhar para si mesmo, nem para o que deu. O que, portanto, a pobreza proporciona? Nada, senão a confiança total em Deus. E a confiança total em Deus dá a alegria.
NOTA: Reportagem
é de Yves
Combeau e
publicada no sítio da revista francesa La
Vie, 21-06-2013.
Nenhum comentário:
Postar um comentário