Santo Padre da Igreja
« Doutor da Igreja »
O papa São Sixto III morreu pelo ano de 440, no mês de agosto. Após um conclave que durou 18 anos, foi eleito para suceder-lhe, São Leão, seu arqui-diácono, natural da Toscana, mas nascido em Roma. Estava ele nas Gálias, onde acabara de reconciliar os generais Aécio e Albino. Tão alto era o conceito em que a Igreja o tinha, que preferiu ficar quarenta dias sem pastor a nomear outro. E o que houve de admirável nisso, foi que, durante tão longo tempo, não se formou nenhuma perturbação na cidade. Enviaram-lhe emissários para convidá-lo a vir tomar conta de sua pátria e de sua Igreja. Ele veio e foi ordenado bispo, num domingo, dia 29 de setembro do mesmo ano. Sentiu-se menos alegre com a sagração do que com a obrigação de servir aos outros. Não foi sem receio que se deixou investir de tão alto ministério, sabendo que poderia causar frequentes quedas. Mas a afeição que o povo lhe testemunhou à sua entrada, deu-lhe esperança de conduzi-lo com facilidade e levá-lo ao bem, sem restrições. E não se enganou. O povo teve por ele grande submissão.
Reconheceu, pelos efeitos, que seus conselhos eram recebidos com alegria. Pregava muitas vezes, sobretudo nas grandes solenidades, e no dia em que se comemorava mais um aniversário de sua ordenação. Não se sabe onde Sozômenes soube, que, em Roma, nem o Papa nem outra pessoa pregava na igreja. Os sermões que ainda nos restam de São Leão são uma prova em contrário e ele mesmo diz no elogio ao predecessor, no dia da festa dos sete irmãos Macabeus, que tinha o costume de instruir publicamente o povo. Em grande número desses discursos, fala da pregação como de um dever ligado ao ministério dos Papas, como aos dos demais bispos. Um dos cuidados que teve foi trazer para Roma as pessoas que mais se distinguiam pelo saber e pela integridade dos costumes, para delas se servir no governo da Igreja. Entre essas pessoas, cita-se São Próspero da Aqüitânia, que o ajudou a escrever as cartas mais importantes.
A Igreja e o império tinham igual necessidade de um homem tal como São Leão, com justiça cognominado o Grande. Entre os povos que invadiam o império de todos os lados, havia muito poucos católicos. Quase todos eram arianos ou idólatras. Os vândalos arianos pilhavam as igrejas da África com furor de arianos e de vândalos. Os maniqueus fugitivos de Cartago afluíam à Itália, e ameaçavam infestar Roma. Os priscilianistas inquietavam a Espanha, os pelagianos a Venecia e os nestorianos o Oriente. Uma nova heresia sairá de Constantinopla, que, por inépcia do imperador Teodósio, revolucionará ao mesmo tempo a Igreja e o império — Átila marchará sobre Roma, Genserico a tomará e Leão se mostrará maior do que todas as calamidades.
Devastada pelos vândalos a Sicília, São Leão enviou a Pascásio, bispo de Lilibeu, socorros com cartas de consolação. Ao mesmo tempo, consultava-o sobre o dia de Páscoa do ano seguinte, 444, como já havia consultado São Cirilo de Alexandria. Pascásio respondeu-lhe que, após ter examinado a questão e calculado exatamente, havia chegado à conclusão de que a Páscoa, no ano seguinte, deveria ser o dia 23 de abril, um domingo. E dava as razões em que se apoiara.
No dia 10 de outubro do mesmo ano, 443, São Leão escreveu uma decretal aos bispos da Itália, para coibir vários abusos que se tinham introduzido na disciplina eclesiástica. Escreveu igualmente ao bispo de Aquiléia, metropolitano da Venecia, para lá extirpar algum resto do pelagianismo. Nomeou Anastasio, bispo da Tessalônia, seu vigário na Ilíria, dizendo-lhe: "Consultar-nos-eis em todos os casos de maior importância que não puderem ser resolvidos nos lugares, bem como as apelações". A Mauritânia Cesareana, província da Argélia, pertencia ainda ao império do Ocidente. Mas sofrera imensamente com a guerra dos vândalos. São Leão, cientificado pelos que de lá vinham de que ordenações irregulares estavam sendo feitas, deu comissão ao bispo Potêncio, que de Roma para lá se dirigia, para se informar da verdade. Baseado em relatório desse bispo, São Leão escreveu uma carta decretal que termina com estas palavras: "Se outras questões se levantarem, as quais possam interessar o estado da igreja e a concórdia dos bispos, queremos que sejam examinadas no próprio lugar, dentro do espírito de temor a Deus, e que todas as decisões tomadas ou a serem tomadas nos sejam comunicadas, em um relatório completo, para que o que tenha sido definido com justiça e racionalmente, segundo o costume da Igreja, seja também confirmado por minha sentença". Essa decretal é das mais importantes, pelo fato de nos apontar o direito, o uso e os efeitos das apelações a Roma, particularmente da África.
Entre os que passaram para a Itália, dada a desolação da África e por causa do temor aos vândalos, havia grande número de maniqueus que se refugiaram em Roma e lá permaneceram escondidos durante algum tempo. Mas São Leão os descobriu e, em vários sermões, advertiu o povo a respeito do fato, exortando-o a denunciá-los aos sacerdotes e aos curas. Os priscilianistas, que não se distinguiam absolutamente dos maniqueus, dos quais, aliás, se originavam, se multiplicaram novamente na Espanha, o que provocou distúrbios. Informado da situação por São Turíbio, bispo de Astorga, São Leão lhe escreveu em 21 de julho de 447, longa carta. Descreve a heresia dos priscilianistas como a sentina de todas as heresias anteriores. Insiste particularmente no fato de negarem eles o livre arbítrio do homem e atribuírem todas as ações a uma necessidade fatal, a influência dos astros. É de boa nota que nossos Pais, desde o começo, tudo fizeram para banir esse furor ímpio do seio da Igreja. Ainda mais que os príncipes do século tiveram tanto horror por essa sacrílega demência, que abateram o autor e vários dos seus discípulos com o gládio das leis públicas. Viram eles que seria arruinar o zelo pela honestidade dissolver todas as uniões conjugais, deturpar todas as leis divinas e humanas, permitir que pessoas semelhantes continuassem vivendo e professando semelhantes princípios. São Leão acentuou a conformidade dos priscilianistas com os maniqueus e enviou a São Turíbio as atas dos processos que havia formulado em Roma, contra eles.
Nesses processos, particularmente contra os maniqueus de Roma, vê-se o nome e a forma do que mais tarde se chamou inquisição. O santo Papa, que lhe dá o nome de inquisição mais de uma vez, a ela preside, assistido de bispos, sacerdotes, senadores e outras personagens ilustres. Declara aos fiéis que são obrigados pela consciência a denunciar os hereges. Faz com que pessoas suspeitas lhe sejam trazidas à presença e procura obter que se retratem. Os que se voltavam para a igreja recebiam a penitência; os que se obstinavam eram entregues às mãos seculares, para receberem a punição, de acordo com as leis do império, minando que estavam, pela adoção de tais princípios, as próprias bases da moral e da sociedade.
Entre os santos bispos das Gálias, o principal foi Santo Hilário de Arles. Exercia este uma espécie de supremacia sobre as igrejas desse país. Havia mais de uma razão para tanto. Vários Papas, notadamente São Zósimo, haviam designado os predecessores na sede de Arles, como seus vigários nas Gálias. Além disso, talvez por causa da amizade por sua pessoa ou veneração por seu mérito, metropolitanos lhe cediam os direitos. Enfim o patrício Aécio e o prefeito do pretório, que lhe dedicavam particular afeição, deram-lhe uma escolta de soldados para as viagens. Tudo isso, se não tivesse sido reprimido, teria provocado consequências desagradáveis. Um dos sucessores de Hilário teria podido abusar desse exemplo, assim como do pretexto de que a cidade de Arles era a metrópole civil das Gálias para a residência do prefeito, para se arrogar domínio secular sobre todas as igrejas gálicas. Já pecara Hilário por um zelo pouco sério, falta em que podem incorrer até os santos. Chegado a Besançon, no curso das viagens, denunciaram-lhe Celidônio, bispo dessa cidade, como ordenado contra as regras, por ter sido casado com uma viúva e por ter condenado à morte, durante o tempo em que fora magistrado. Hilário reuniu um concílio e depôs o bispo Celidônio, taxando-o de bígamo. Um outro foi nomeado para substituí-lo. Celidônio recorreu ao Papa e chegou mesmo a ir a Roma. Ao mesmo tempo, Hilário soube que Projecto, bispo de outra localidade que não Arles, estava doente, nomeou imediatamente e ordenou outro bispo, como se o bispado estivesse vacante. Restabelecendo-se, Projecto se queixou igualmente desse procedimento ao papa São Leão.
Hilário, ao saber que Celidônio fora a Roma, para lá também se dirigiu apesar dos rigores do inverno. São Leão reuniu um concílio para julgar os acontecimentos. Celidônio produziu testemunhas que o declararam inocente perante a irregularidade com que fora condenado. Hilário nada opôs às testemunhas. Interrogado, não deu nenhuma resposta razoável, chegando mesmo a confundir-se completamente. Disse até coisas que um leigo não podia dizer, nem um bispo ouvir. Por fim, citado em processo, fugiu vergonhosamente de Roma. Tal é o julgamento de São Leão e do concílio. De volta a Arles, aplicou-se inteiramente a apaziguar o Papa. E nesse sentido, escreveu várias cartas.
Quatro ou cinco meses após a partida precipitada de Hilário, São Leão dirigiu uma decretal a todos os bispos das províncias interessadas no caso.
Inicia por estabelecer a autoridade da Santa Sé a respeito das prerrogativas concedidas a São Pedro, "Jesus Cristo, diz, instituiu de tal forma a economia de sua religião para iluminar pela graça todos os povos e todas as nações, que desejou que a verdade, anunciada anteriormente pelos profetas, aproveitasse a todos os povos, para salvá-los por meio dos apóstolos. Mas, querendo que esse ministério pertencesse a todos os apóstolos, centraliza-o em São Pedro, chefe de todos os apóstolos, e quis que fosse dele, na qualidade de chefe, que se espalhasse para todo o corpo; de sorte que, quem quer que se afaste da solidez de Pedro, deve saber que não tem mais parte nesse ministério divino". O Papa declara aos bispos que absolveu Celidônio, baseado em depoimento de testemunhas; que manteve Projecto na sua sede, e censura Hilário por haver dado a um bispo doente o desagrado de nomear-lhe um sucessor, e por haver feito a mesma coisa em outra província na qual não tinha direito algum, tendo a Igreja revogado o privilégio que concedera durante algum tempo a Pátroclo, e finalmente, por ter feito essa ordenação sem ter tomado o voto do clero e do povo. Dá aos metropolitanos o direito de ordenações com os mais antigos bispos da província. “Não é permitido a um metropolitano, diz, transferir seu privilégio a outro. Se o fizer, apesar dos decretos apostólicos, o direito de ordenação voltará aos mais antigos bispos da provincia”. Por fim, o Papa tira a Hilário o direito de metropolitano. Feliz, acrescenta, de conservar sua própria sede por indulgência da sé apostólica. Ao enviar essa decretal às Gálias, São Leão juntou a ela uma constituição do imperador Valentiniano III, datada de 8 de julho de 445. O imperador, ao se referir à sentença pronunciada pelo Papa, que chama de irreformável, diz: "Essa sentença não tinha necessidade de nossa sanção imperial para ser executada nas Gálias; porque, que é que não pode nas igrejas a autoridade de tão grande pontífice?".
Enquanto São Leão mantinha a disciplina eclesiástica no Ocidente, foi chamado a manter a fé cristã no Oriente. Como já vimos, na vida do papa São Celestino, Nestório, bispo de Constantinopla, ignorando os principais mistérios da fé que devia ensinar, avançara demais e afirmava que em Jesus Cristo havia duas pessoas, a de Deus e a do homem; que o Verbo não se uniu hipostaticamente à natureza humana; que não a tomou senão como um templo no qual habita, e que, por conseguinte, a santa Virgem não é mãe de Deus, mas somente mãe do homem ou do Cristo. Eutíquio, monge de Constantinopla e abade de um mosteiro tão ignorante quanto Nestório, caiu no erro oposto e ensinava que em Jesus Cristo as duas naturezas estavam confundidas em uma, e que, dessa forma, não existia nele senão uma só natureza, como também uma só pessoa. Essa herética opinião foi condenada por São Flávio, bispo de Constantinopla; mas, encontrando proteção em um eunuco da corte, favorito do imperador Teodósio, o Jovem, obteve a condenação de Flávio, por uma assembléia, conhecida pelo nome de pilhagem de Éfeso. Dióscoro, bispo de Alexandria, que a presidiu por ordem do imperador, ou melhor, do eunuco, não somente depôs o santo, mas tratou-o tão brutalmente, que alguns dias depois, Flávio morreu. São Leão, o quadragésimo-quarto sucessor de São Pedro, de acordo com o imperador Marciano, sucessor de Teodósio, convocou um concílio em Calcedônia, no qual Dióscoro foi deposto, a heresia condenada, e a fé católica afirmada. Por isso, sempre veremos às portas os poderes do inferno insurgir-se contra a Igreja, mas jamais prevalecer contra ela, porque a Igreja está construída sobre pedra e é sempre dessa pedra que parte o golpe que quebra todas as heresias. Com relação a Eutíquio, como também a Nestório, todas as partes se dirigiram à Santa Sé de Roma: São Flávio de Constantinopla, o imperador Teodósio, o próprio Eutíquio. São Leão respondeu a todos. Uma de suas cartas a Flávio decidia questão de doutrina e devia servir de regra ao concílio ecumênico. Quando foi lida em Calcedônia, todos os membros do concílio exclamaram: “Pedro falou por Leão!" Nesse mesmo concílio, composto de seiscentos bispos, Dióscoro não foi admitido como bispo, mas tão somente como acusado. Um dos presidentes lhe deu a causa: "Deve dar ele as razões do modo de raciocinar, porque, não tendo autoridade de juiz, a usurpou e ousou reunir um concílio sem a autorização da Sé apostólica, o que jamais aconteceu, dado que não é permitido." Tendo terminado os assuntos referentes à fé, o concílio de Calcedônia estabeleceu um vigésimo-oitavo cânone, que concedia ao bispo de Constantinopla a prioridade logo após o Pontífice romano, ao passo que anteriormente vinha depois dos bispos de Alexandria e de Antioquia. Esse cânone, como todas as outras decisões, foram submetidas à apreciação do Papa. E o concílio, o imperador e o bispo de Constantinopla suplicaram-lhe que os aprovasse. São Leão aprovou o que se fizera com relação à fé; "mas, disse em uma carta à imperatriz, no que diz respeito às convenções dos bispos, contrárias aos santos cânones de Nicéia, em consonância com a vossa piedade, nós as anulamos; e, com a autoridade do bem-aventurado apóstolo Pedro, cassamo-las, por uma definição absoluta". Essa decisão do Papa liquidou com todas as dúvidas. Não se encontrou nenhum meio de suplicar-lhe a aprovação. E, apesar do voto de grande peso de um concílio geral, apesar do interesse vivo que o imperador e o bispo Anatólio de Constantinopla tinham no engrandecimento do bispado, foi necessário ceder à autoridade, à qual todas as sés estão submetidas. É o que depreendemos de São Leão e do próprio Anatólio.
Algo mais notável ainda, talvez, é o que se lê no sínodo de Constantinopla, ou seja, no registro dos atos dessa igreja. Embora Cismático, o autor desse registro diz, a respeito do vigésimo oitavo cânone do quarto concílio: "Parece-me que esse cânone não foi nem sequer aceito no princípio, mas abolido imediatamente, porque é sabido que Leão de Roma não aprovou a decisão do concílio, nesse particular, como também censurou a absurda novidade com indignação, nas cartas que escreveu, tanto ao imperador como ao concílio. De onde vem, penso, o fato de nenhum dos dois concílios seguintes, o quinto e o realizado sob Justiniano, nem mesmo o de Pogonat, terem escrito nada a respeito de cânones. Diz o sexto concílio: Estatuímos, renovando (e não, confirmando). O que mostra que desde o começo esse cânone do quarto concílio não fora posto em prática, nem recebido, mas ficara sem nenhum efeito. Refiro-me ao cânone no tocante à prerrogativa e à preeminência nas coisas eclesiásticas; porque o que não teve consistência na origem, mas foi anulado imediatamente, é renovado; ao passo que aquilo que subsiste e se pratica é confirmado e aprovado. Assim é que cada concílio fala dos concílios anteriores".
Todavia, os povos bárbaros que deviam punir a Roma idólatra e desmembrar-lhe o império, avançavam uns após outros. Depois dos godos, vieram os hunos, com Átila, o terrível Átila à frente, intitulando-se o flagelo de Deus. Ele era digno desse nome. Por toda parte onde passava, abria alas a ferro e sangue. Entrou na Itália, reduzindo as cidades pilhadas a cinzas. Roma, abandonada pelos imperadores romanos, estaria perdida, se não fosse o papa São Leão. Foi ao encontro do conquistador, o qual, contra toda a expectativa, o recebeu com todas as honras, concedendo-lhe a paz e retirando-se para seu país. Foi em 453. Dois anos depois, Genserico, rei dos vândalos, outro povo bárbaro, que se apossara da África, marchou sobre Roma com um exército temível. São Leão, ainda, foi-lhe ao encontro e obteve que as tropas se contentassem com pilhar a cidade, sem derramar sangue e sem atear-lhe fogo. Roma foi, assim, duas vezes, salva por esse santo Papa, que morreu em 10 de novembro de 461 em Roma e foi declarado doutor da igreja por Bento XIV em 1754.
Sua festa é celebrada em 11 de abril e são conservadas 432 cartas e quase cem sermões de sua autoria, expondo sua teorias e doutrinas..
A humildade, a doçura e a caridade eram as virtudes principais de São Leão. Imitemo-lo. Escutemos o que nos recomenda. É uma máxima do cristianismo que as únicas e verdadeiras riquezas consistem nessa bem-aventurada pobreza de espírito tão fortemente recomendada pelo Salvador, isto é, a humildade e o completo desprendimento de toda afeição terrestre. Quanto mais humildes formos, maiores seremos; quanto mais pobres de espírito, mais ricos. Nosso progresso nessa pobreza de espírito será a medida da parte que teremos na distribuição da graça e dos dons celestes.
Fonte: Padre Rohrbacher, Vida dos Santos, Tomo VI.
Reconheceu, pelos efeitos, que seus conselhos eram recebidos com alegria. Pregava muitas vezes, sobretudo nas grandes solenidades, e no dia em que se comemorava mais um aniversário de sua ordenação. Não se sabe onde Sozômenes soube, que, em Roma, nem o Papa nem outra pessoa pregava na igreja. Os sermões que ainda nos restam de São Leão são uma prova em contrário e ele mesmo diz no elogio ao predecessor, no dia da festa dos sete irmãos Macabeus, que tinha o costume de instruir publicamente o povo. Em grande número desses discursos, fala da pregação como de um dever ligado ao ministério dos Papas, como aos dos demais bispos. Um dos cuidados que teve foi trazer para Roma as pessoas que mais se distinguiam pelo saber e pela integridade dos costumes, para delas se servir no governo da Igreja. Entre essas pessoas, cita-se São Próspero da Aqüitânia, que o ajudou a escrever as cartas mais importantes.
A Igreja e o império tinham igual necessidade de um homem tal como São Leão, com justiça cognominado o Grande. Entre os povos que invadiam o império de todos os lados, havia muito poucos católicos. Quase todos eram arianos ou idólatras. Os vândalos arianos pilhavam as igrejas da África com furor de arianos e de vândalos. Os maniqueus fugitivos de Cartago afluíam à Itália, e ameaçavam infestar Roma. Os priscilianistas inquietavam a Espanha, os pelagianos a Venecia e os nestorianos o Oriente. Uma nova heresia sairá de Constantinopla, que, por inépcia do imperador Teodósio, revolucionará ao mesmo tempo a Igreja e o império — Átila marchará sobre Roma, Genserico a tomará e Leão se mostrará maior do que todas as calamidades.
Devastada pelos vândalos a Sicília, São Leão enviou a Pascásio, bispo de Lilibeu, socorros com cartas de consolação. Ao mesmo tempo, consultava-o sobre o dia de Páscoa do ano seguinte, 444, como já havia consultado São Cirilo de Alexandria. Pascásio respondeu-lhe que, após ter examinado a questão e calculado exatamente, havia chegado à conclusão de que a Páscoa, no ano seguinte, deveria ser o dia 23 de abril, um domingo. E dava as razões em que se apoiara.
No dia 10 de outubro do mesmo ano, 443, São Leão escreveu uma decretal aos bispos da Itália, para coibir vários abusos que se tinham introduzido na disciplina eclesiástica. Escreveu igualmente ao bispo de Aquiléia, metropolitano da Venecia, para lá extirpar algum resto do pelagianismo. Nomeou Anastasio, bispo da Tessalônia, seu vigário na Ilíria, dizendo-lhe: "Consultar-nos-eis em todos os casos de maior importância que não puderem ser resolvidos nos lugares, bem como as apelações". A Mauritânia Cesareana, província da Argélia, pertencia ainda ao império do Ocidente. Mas sofrera imensamente com a guerra dos vândalos. São Leão, cientificado pelos que de lá vinham de que ordenações irregulares estavam sendo feitas, deu comissão ao bispo Potêncio, que de Roma para lá se dirigia, para se informar da verdade. Baseado em relatório desse bispo, São Leão escreveu uma carta decretal que termina com estas palavras: "Se outras questões se levantarem, as quais possam interessar o estado da igreja e a concórdia dos bispos, queremos que sejam examinadas no próprio lugar, dentro do espírito de temor a Deus, e que todas as decisões tomadas ou a serem tomadas nos sejam comunicadas, em um relatório completo, para que o que tenha sido definido com justiça e racionalmente, segundo o costume da Igreja, seja também confirmado por minha sentença". Essa decretal é das mais importantes, pelo fato de nos apontar o direito, o uso e os efeitos das apelações a Roma, particularmente da África.
Entre os que passaram para a Itália, dada a desolação da África e por causa do temor aos vândalos, havia grande número de maniqueus que se refugiaram em Roma e lá permaneceram escondidos durante algum tempo. Mas São Leão os descobriu e, em vários sermões, advertiu o povo a respeito do fato, exortando-o a denunciá-los aos sacerdotes e aos curas. Os priscilianistas, que não se distinguiam absolutamente dos maniqueus, dos quais, aliás, se originavam, se multiplicaram novamente na Espanha, o que provocou distúrbios. Informado da situação por São Turíbio, bispo de Astorga, São Leão lhe escreveu em 21 de julho de 447, longa carta. Descreve a heresia dos priscilianistas como a sentina de todas as heresias anteriores. Insiste particularmente no fato de negarem eles o livre arbítrio do homem e atribuírem todas as ações a uma necessidade fatal, a influência dos astros. É de boa nota que nossos Pais, desde o começo, tudo fizeram para banir esse furor ímpio do seio da Igreja. Ainda mais que os príncipes do século tiveram tanto horror por essa sacrílega demência, que abateram o autor e vários dos seus discípulos com o gládio das leis públicas. Viram eles que seria arruinar o zelo pela honestidade dissolver todas as uniões conjugais, deturpar todas as leis divinas e humanas, permitir que pessoas semelhantes continuassem vivendo e professando semelhantes princípios. São Leão acentuou a conformidade dos priscilianistas com os maniqueus e enviou a São Turíbio as atas dos processos que havia formulado em Roma, contra eles.
Nesses processos, particularmente contra os maniqueus de Roma, vê-se o nome e a forma do que mais tarde se chamou inquisição. O santo Papa, que lhe dá o nome de inquisição mais de uma vez, a ela preside, assistido de bispos, sacerdotes, senadores e outras personagens ilustres. Declara aos fiéis que são obrigados pela consciência a denunciar os hereges. Faz com que pessoas suspeitas lhe sejam trazidas à presença e procura obter que se retratem. Os que se voltavam para a igreja recebiam a penitência; os que se obstinavam eram entregues às mãos seculares, para receberem a punição, de acordo com as leis do império, minando que estavam, pela adoção de tais princípios, as próprias bases da moral e da sociedade.
Entre os santos bispos das Gálias, o principal foi Santo Hilário de Arles. Exercia este uma espécie de supremacia sobre as igrejas desse país. Havia mais de uma razão para tanto. Vários Papas, notadamente São Zósimo, haviam designado os predecessores na sede de Arles, como seus vigários nas Gálias. Além disso, talvez por causa da amizade por sua pessoa ou veneração por seu mérito, metropolitanos lhe cediam os direitos. Enfim o patrício Aécio e o prefeito do pretório, que lhe dedicavam particular afeição, deram-lhe uma escolta de soldados para as viagens. Tudo isso, se não tivesse sido reprimido, teria provocado consequências desagradáveis. Um dos sucessores de Hilário teria podido abusar desse exemplo, assim como do pretexto de que a cidade de Arles era a metrópole civil das Gálias para a residência do prefeito, para se arrogar domínio secular sobre todas as igrejas gálicas. Já pecara Hilário por um zelo pouco sério, falta em que podem incorrer até os santos. Chegado a Besançon, no curso das viagens, denunciaram-lhe Celidônio, bispo dessa cidade, como ordenado contra as regras, por ter sido casado com uma viúva e por ter condenado à morte, durante o tempo em que fora magistrado. Hilário reuniu um concílio e depôs o bispo Celidônio, taxando-o de bígamo. Um outro foi nomeado para substituí-lo. Celidônio recorreu ao Papa e chegou mesmo a ir a Roma. Ao mesmo tempo, Hilário soube que Projecto, bispo de outra localidade que não Arles, estava doente, nomeou imediatamente e ordenou outro bispo, como se o bispado estivesse vacante. Restabelecendo-se, Projecto se queixou igualmente desse procedimento ao papa São Leão.
Hilário, ao saber que Celidônio fora a Roma, para lá também se dirigiu apesar dos rigores do inverno. São Leão reuniu um concílio para julgar os acontecimentos. Celidônio produziu testemunhas que o declararam inocente perante a irregularidade com que fora condenado. Hilário nada opôs às testemunhas. Interrogado, não deu nenhuma resposta razoável, chegando mesmo a confundir-se completamente. Disse até coisas que um leigo não podia dizer, nem um bispo ouvir. Por fim, citado em processo, fugiu vergonhosamente de Roma. Tal é o julgamento de São Leão e do concílio. De volta a Arles, aplicou-se inteiramente a apaziguar o Papa. E nesse sentido, escreveu várias cartas.
Quatro ou cinco meses após a partida precipitada de Hilário, São Leão dirigiu uma decretal a todos os bispos das províncias interessadas no caso.
Inicia por estabelecer a autoridade da Santa Sé a respeito das prerrogativas concedidas a São Pedro, "Jesus Cristo, diz, instituiu de tal forma a economia de sua religião para iluminar pela graça todos os povos e todas as nações, que desejou que a verdade, anunciada anteriormente pelos profetas, aproveitasse a todos os povos, para salvá-los por meio dos apóstolos. Mas, querendo que esse ministério pertencesse a todos os apóstolos, centraliza-o em São Pedro, chefe de todos os apóstolos, e quis que fosse dele, na qualidade de chefe, que se espalhasse para todo o corpo; de sorte que, quem quer que se afaste da solidez de Pedro, deve saber que não tem mais parte nesse ministério divino". O Papa declara aos bispos que absolveu Celidônio, baseado em depoimento de testemunhas; que manteve Projecto na sua sede, e censura Hilário por haver dado a um bispo doente o desagrado de nomear-lhe um sucessor, e por haver feito a mesma coisa em outra província na qual não tinha direito algum, tendo a Igreja revogado o privilégio que concedera durante algum tempo a Pátroclo, e finalmente, por ter feito essa ordenação sem ter tomado o voto do clero e do povo. Dá aos metropolitanos o direito de ordenações com os mais antigos bispos da província. “Não é permitido a um metropolitano, diz, transferir seu privilégio a outro. Se o fizer, apesar dos decretos apostólicos, o direito de ordenação voltará aos mais antigos bispos da provincia”. Por fim, o Papa tira a Hilário o direito de metropolitano. Feliz, acrescenta, de conservar sua própria sede por indulgência da sé apostólica. Ao enviar essa decretal às Gálias, São Leão juntou a ela uma constituição do imperador Valentiniano III, datada de 8 de julho de 445. O imperador, ao se referir à sentença pronunciada pelo Papa, que chama de irreformável, diz: "Essa sentença não tinha necessidade de nossa sanção imperial para ser executada nas Gálias; porque, que é que não pode nas igrejas a autoridade de tão grande pontífice?".
Enquanto São Leão mantinha a disciplina eclesiástica no Ocidente, foi chamado a manter a fé cristã no Oriente. Como já vimos, na vida do papa São Celestino, Nestório, bispo de Constantinopla, ignorando os principais mistérios da fé que devia ensinar, avançara demais e afirmava que em Jesus Cristo havia duas pessoas, a de Deus e a do homem; que o Verbo não se uniu hipostaticamente à natureza humana; que não a tomou senão como um templo no qual habita, e que, por conseguinte, a santa Virgem não é mãe de Deus, mas somente mãe do homem ou do Cristo. Eutíquio, monge de Constantinopla e abade de um mosteiro tão ignorante quanto Nestório, caiu no erro oposto e ensinava que em Jesus Cristo as duas naturezas estavam confundidas em uma, e que, dessa forma, não existia nele senão uma só natureza, como também uma só pessoa. Essa herética opinião foi condenada por São Flávio, bispo de Constantinopla; mas, encontrando proteção em um eunuco da corte, favorito do imperador Teodósio, o Jovem, obteve a condenação de Flávio, por uma assembléia, conhecida pelo nome de pilhagem de Éfeso. Dióscoro, bispo de Alexandria, que a presidiu por ordem do imperador, ou melhor, do eunuco, não somente depôs o santo, mas tratou-o tão brutalmente, que alguns dias depois, Flávio morreu. São Leão, o quadragésimo-quarto sucessor de São Pedro, de acordo com o imperador Marciano, sucessor de Teodósio, convocou um concílio em Calcedônia, no qual Dióscoro foi deposto, a heresia condenada, e a fé católica afirmada. Por isso, sempre veremos às portas os poderes do inferno insurgir-se contra a Igreja, mas jamais prevalecer contra ela, porque a Igreja está construída sobre pedra e é sempre dessa pedra que parte o golpe que quebra todas as heresias. Com relação a Eutíquio, como também a Nestório, todas as partes se dirigiram à Santa Sé de Roma: São Flávio de Constantinopla, o imperador Teodósio, o próprio Eutíquio. São Leão respondeu a todos. Uma de suas cartas a Flávio decidia questão de doutrina e devia servir de regra ao concílio ecumênico. Quando foi lida em Calcedônia, todos os membros do concílio exclamaram: “Pedro falou por Leão!" Nesse mesmo concílio, composto de seiscentos bispos, Dióscoro não foi admitido como bispo, mas tão somente como acusado. Um dos presidentes lhe deu a causa: "Deve dar ele as razões do modo de raciocinar, porque, não tendo autoridade de juiz, a usurpou e ousou reunir um concílio sem a autorização da Sé apostólica, o que jamais aconteceu, dado que não é permitido." Tendo terminado os assuntos referentes à fé, o concílio de Calcedônia estabeleceu um vigésimo-oitavo cânone, que concedia ao bispo de Constantinopla a prioridade logo após o Pontífice romano, ao passo que anteriormente vinha depois dos bispos de Alexandria e de Antioquia. Esse cânone, como todas as outras decisões, foram submetidas à apreciação do Papa. E o concílio, o imperador e o bispo de Constantinopla suplicaram-lhe que os aprovasse. São Leão aprovou o que se fizera com relação à fé; "mas, disse em uma carta à imperatriz, no que diz respeito às convenções dos bispos, contrárias aos santos cânones de Nicéia, em consonância com a vossa piedade, nós as anulamos; e, com a autoridade do bem-aventurado apóstolo Pedro, cassamo-las, por uma definição absoluta". Essa decisão do Papa liquidou com todas as dúvidas. Não se encontrou nenhum meio de suplicar-lhe a aprovação. E, apesar do voto de grande peso de um concílio geral, apesar do interesse vivo que o imperador e o bispo Anatólio de Constantinopla tinham no engrandecimento do bispado, foi necessário ceder à autoridade, à qual todas as sés estão submetidas. É o que depreendemos de São Leão e do próprio Anatólio.
Algo mais notável ainda, talvez, é o que se lê no sínodo de Constantinopla, ou seja, no registro dos atos dessa igreja. Embora Cismático, o autor desse registro diz, a respeito do vigésimo oitavo cânone do quarto concílio: "Parece-me que esse cânone não foi nem sequer aceito no princípio, mas abolido imediatamente, porque é sabido que Leão de Roma não aprovou a decisão do concílio, nesse particular, como também censurou a absurda novidade com indignação, nas cartas que escreveu, tanto ao imperador como ao concílio. De onde vem, penso, o fato de nenhum dos dois concílios seguintes, o quinto e o realizado sob Justiniano, nem mesmo o de Pogonat, terem escrito nada a respeito de cânones. Diz o sexto concílio: Estatuímos, renovando (e não, confirmando). O que mostra que desde o começo esse cânone do quarto concílio não fora posto em prática, nem recebido, mas ficara sem nenhum efeito. Refiro-me ao cânone no tocante à prerrogativa e à preeminência nas coisas eclesiásticas; porque o que não teve consistência na origem, mas foi anulado imediatamente, é renovado; ao passo que aquilo que subsiste e se pratica é confirmado e aprovado. Assim é que cada concílio fala dos concílios anteriores".
Todavia, os povos bárbaros que deviam punir a Roma idólatra e desmembrar-lhe o império, avançavam uns após outros. Depois dos godos, vieram os hunos, com Átila, o terrível Átila à frente, intitulando-se o flagelo de Deus. Ele era digno desse nome. Por toda parte onde passava, abria alas a ferro e sangue. Entrou na Itália, reduzindo as cidades pilhadas a cinzas. Roma, abandonada pelos imperadores romanos, estaria perdida, se não fosse o papa São Leão. Foi ao encontro do conquistador, o qual, contra toda a expectativa, o recebeu com todas as honras, concedendo-lhe a paz e retirando-se para seu país. Foi em 453. Dois anos depois, Genserico, rei dos vândalos, outro povo bárbaro, que se apossara da África, marchou sobre Roma com um exército temível. São Leão, ainda, foi-lhe ao encontro e obteve que as tropas se contentassem com pilhar a cidade, sem derramar sangue e sem atear-lhe fogo. Roma foi, assim, duas vezes, salva por esse santo Papa, que morreu em 10 de novembro de 461 em Roma e foi declarado doutor da igreja por Bento XIV em 1754.
Sua festa é celebrada em 11 de abril e são conservadas 432 cartas e quase cem sermões de sua autoria, expondo sua teorias e doutrinas..
A humildade, a doçura e a caridade eram as virtudes principais de São Leão. Imitemo-lo. Escutemos o que nos recomenda. É uma máxima do cristianismo que as únicas e verdadeiras riquezas consistem nessa bem-aventurada pobreza de espírito tão fortemente recomendada pelo Salvador, isto é, a humildade e o completo desprendimento de toda afeição terrestre. Quanto mais humildes formos, maiores seremos; quanto mais pobres de espírito, mais ricos. Nosso progresso nessa pobreza de espírito será a medida da parte que teremos na distribuição da graça e dos dons celestes.
Fonte: Padre Rohrbacher, Vida dos Santos, Tomo VI.
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