"Eu te declaro: tu és Pedro, e sobre esta
pedra edificarei a minha Igreja; as portas do inferno não prevalecerão contra
ela" (Mt 16, 18).
Nos últimos cem anos, poucas passagens do Evangelho
têm sido objeto de discussões tão veementes e apaixonadas, pois, segundo alegam
alguns, a formulação atual não corresponderia ao original escrito por Marcos,
mas tratar-se-ia de um texto manipulado por volta do ano 130 com vistas a
justificar o primado de Pedro e seus sucessores sobre seus irmãos no
episcopado. Entretanto, durante séculos ninguém pusera em dúvida a
autenticidade dessa passagem. Foi preciso aguardar a infiltração do racionalismo
na exegese bíblica no século XIX e o historicismo protestante do século XX,
para começarem as tentativas de desqualificá-la.
Pelo contrário, mais de 160 passagens do Novo
Testamento mencionam Pedro ocupando uma posição de preeminência sobre os demais
Apóstolos.
Até
mesmo São João - em plena polêmica com os gnósticos - traz duas importantes
referências à entrega do primado petrino:
"Serás
chamado Cefas (que quer dizer pedra)" (Jo 1, 42);
e
"Simão,
filho de João, amas-Me mais do que estes? [...] Apascenta meus cordeiros"
(Jo 21, 15-17).
Testemunho dos Padres
Apostólicos
Ora, na carta enviada pelo Papa
São Clemente aos fiéis de Corinto, a respeito da rebelião ocorrida nessa
comunidade em torno do ano 96, fica patente o primado romano. Com efeito, nela
o Pontífice não pede desculpas por imiscuir-se nos assuntos internos de outra
Igreja - como seria normal, caso fosse um simples primus inter pares, chefe de
outra Igreja irmã -, mas escusa-se por não ter tido oportunidade de intervir no
assunto com mais rapidez; adverte do perigo de cometer pecado grave quem não
obedecer às suas admoestações; e mostra-se convencido de que sua atitude é
inspirada pelo Espírito Santo.
Por outro lado, a carta foi recebida em Corinto sem
resistências e considerada como uma grande honra, a ponto de ainda no ano de
170, segundo testemunhas, ser lida na liturgia dominical.
Fundamento Bíblico do Primado Petrino
São Pedro ocupa posição
preeminente no Novo Testamento, onde é mencionado 114 vezes nos Evangelhos e 57
vezes nos Atos dos Apóstolos.
1. Fala
em nome de todos os Apóstolos (Lc 12, 41, Mt 19, 27, Mc 10, 28, Lc 18, 28),
2. Responde
por eles (Jo 6, 68, Mt 16, 16, Mc 8, 29) e,
3. Age
por todos (Mt 14, 28, Mc 8, 32, Mt 16,
22, Lc 22, 8, Jo 18, 10).
4. Outras
vezes os evangelistas referem- se aos Apóstolos dizendo: "Pedro e os
seus" (Mc 1, 36, Lc 8, 45; 9, 32, Mc 16, 7, At 2, 14. 37).
5. Jesus
o elege depois de fazer um grande
milagre (Lc 5, 1-11);
6. Serve-Se
de sua barca para pregar às multidões (Lc 5, 3);
7. Hospeda-Se
em sua casa (Mc 1, 29);
8. Associa-o
a Si no pagamento do tributo (Mt 17, 23-26);
9. Escolhe-o,
com Tiago e João, para assistir à
ressurreição da filha de Jairo (Mc 5,
37),
10. À
transfiguração (Mc 9, 2) e,
11. À
agonia no Getsêmani (Mc 14, 33);
12. É
o primeiro a quem aparece ressuscitado (Lc 24, 34).
13. É
o único dos Doze que o anjo nomeia para ser-lhe comunicada a mensagem da Páscoa (Mc 16, 7).
14. São
João espera a chegada de São Pedro, para deixá-lo entrar primeiro no Sepulcro de Jesus (Jo 20, 2-8).
15. Depois
da Ascensão e de Pentecostes, vemos São Pedro exercendo a autoridade máxima na
Igreja.
16. Completa
o Colégio Apostólico com a eleição de São Matias (At 1, 5ss);
17. Fala
em nome dos Apóstolos no dia de Pentecostes (At 2, 14ss);
18. Defende
perante as autoridades judaicas o
direito dos Apóstolos, de pregar a Fé em
Cristo (At 4, 8-12);
19. Condena
Ananias e Safira (At 5, 1-11);
20. É
inspirado a abrir as portas da Igreja também aos pagãos, com a conversão
do centurião Cornélio (At 10, 47);
21. Preside
o Concílio de Jerusalém (At 15, 6);
22. Toda
a Igreja orava por sua libertação, quando foi encarcerado por ordem de Herodes
(At 12, 5).
23. Por
outro lado, São Paulo assinala de modo preeminente a importância de São Pedro
como cabeça da Igreja. Depois de sua estada na Arábia, dirige-se a Jerusalém
para vê-lo (Gal 1, 18);
24. Reconhece
nele uma das colunas da Igreja (Gal 2, 9);
25. Coloca-o
como o primeiro entre as testemunhas das aparições de Cristo ressuscitado (Cor
15, 5);
26. E
mesmo quando lhe resiste "em face" em Antioquia, age como quem
reconhece sua autoridade e, portanto, confirma de algum modo seu primado
(Gal 2, 11-14).
Outro importante testemunho
dessa época a favor do primado do Sucessor de Pedro é a carta enviada por Santo
Inácio de Antioquia (†107) à Igreja de Roma. Nela também se manifesta de modo
evidente, e mais explícito que no caso anterior, o primado da Sé Romana sobre
as outras. Com efeito, essa missiva é substancialmente diferente das enviadas
por ele nas mesmas circunstâncias (prisioneiro levado da Síria para Roma, onde
seria martirizado) a outras Igrejas, como Éfeso, Magnésia, Trália, Filadélfia e
Esmirna. Na primeira, o santo Bispo de Antioquia escreve em tom submisso; nas
demais, em tom de autoridade.
Eloquente também foi a
intervenção do Papa Vítor I (189-199) a propósito da data da comemoração da
Páscoa, que ele resolveu unificar. Na Província da Ásia se obedecia a outro
calendário. Para solucionar a questão, o Papa convocou um Sínodo dos Bispos
italianos em Roma, escreveu aos Bispos do mundo inteiro e, por fim, conclamou
os Bispos da Ásia a adotar a prática da Igreja universal, de sempre celebrar a
Páscoa no domingo. Caso não o atendessem, ele os declararia excluídos da
comunhão da Igreja. Vários Bispos tentaram moderar a decisão papal, incluindo
Santo Irineu, sem resultado, ao que parece. Fato é que pouco a pouco o costume
romano se tornou prática comum em toda a Igreja. Trata-se de mais uma amostra
do reconhecimento universal do primado do Papa.
Insuspeito Testemunho de um Herege
Mas os argumentos não provêm
apenas do campo católico. Por volta do ano 220, Tertuliano, já então envolvido
na heresia montanista, escreveu um libelo atacando o Papa Calisto I, que
publicara um edito para ser lido em todas as igrejas, suavizando a disciplina
penitencial aplicada aos adúlteros e fornicadores.
Atribuindo de modo sarcástico ao sucessor de Pedro a
expressão "Pontífice Máximo, ou seja, o Bispo dos Bispos" - títulos
então usados pelo Imperador romano -, o malfadado escritor eclesiástico mostra
quão abrangente era o poder espiritual do Papado. Ademais, termina sua longa
objurgatória com uma crítica à reivindicação de Calisto I de que sua autoridade
"de ligar e desligar" se fundamentava na de São Pedro, dando um
precioso testemunho de quão antiga é a consciência da origem divina dessa autoridade.
Detalhe importante: ao tentar
refutar o Papa, Tertuliano - acérrimo adversário da Igreja que antes amara -
cita sem qualquer objeção a passagem do Evangelho de São Mateus contestada
pelos racionalistas dezoito séculos mais tarde: sim, o Senhor disse a Pedro que
este era a rocha sobre a qual construiria a Igreja; deu- lhe, de fato, as
chaves, assim como o poder de ligar e desligar, e confiou-lhe o cuidado da
Igreja. Basta ler as palavras de Tertuliano para constatar que ele se referia a
um fato pacificamente aceito por todos em sua época, tão próxima dos tempos
apostólicos, nem se permitindo alguma suspeita relacionada com adulteração do
texto bíblico.
Supremacia Fundada sobre uma Rocha Divina
São Leão Magno - cujo
pontificado, entre os anos 440 e 461, constitui um interessante ponto de
inflexão na história do primado petrino - referia- se à Igreja de Roma como
magistra (mestra) e não tinha dúvida alguma a respeito da autoridade do Papa
sobre o concílio.
Em nome dessa autoridade
confirmou a doutrina definida pelo Concílio de Calcedônia (451), iniciando
assim uma prática que será mantida por seus sucessores e considerada como
necessária para conferir validez a qualquer concílio ecumênico. Sua conhecida
Epístola dogmática foi aclamada com transportes de entusiasmo pelos Padres
reunidos em Calcedônia, quase todos orientais, com a famosa sentença:
"Isto disse Pedro através de Leão!".
Ora, São Leão Magno desenvolve
o conceito de soberania petrina tomando justamente por base o já citado versículo
de São Mateus: "Eu te declaro: tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei
a minha Igreja; as portas do inferno não prevalecerão contra ela" (Mt 16,
18). Ele põe em realce que essa declaração do Divino Mestre aplica-se
efetivamente à Sé Romana e que o Papa, como Sucessor de Pedro, tem a missão
especialíssima de guiar e governar a Igreja universal, bem como o direito de
intervir e tomar decisões nas questões eclesiásticas das Igrejas locais.
Infelizmente, fatos históricos
indicam, a partir do século VII, uma latente recusa do primado de jurisdição
universal do Bispo de Roma por parte de alguns líderes da Igreja do Oriente,
embora reconhecendo em geral a autoridade papal em matéria doutrinária. O
exaltar dos ânimos teria como triste desfecho o cisma de 1054.
Infalibilidade não significa Impecabilidade
Convém lembrar, por fim, que
nem do exercício do ministério petrino, nem do carisma da infalibilidade advém
ao Romano Pontífice a impecabilidade ou, por outras palavras, a confirmação em
graça.
Um dos argumentos racionalistas
contra o primado de Pedro é que o pescador da Galileia era sujeito a pecar,
como todo homem. E, sem dúvida, o era. Entretanto, seu primado não repousa
sobre qualidades humanas, mas na onipotente força do Fundador da Igreja.
Cristo não chamou São Pedro por
causa das suas qualidades naturais; foi a graça de Deus que o converteu numa
rocha firme e sólida. "Simão, Simão, eis que Satanás vos reclamou para vos
peneirar como o trigo; mas Eu roguei por ti, para que a tua confiança não desfaleça"
(Lc 22, 31-32).
No seu livro-entrevista
recentemente divulgado, Bento XVI relembrou que a tarefa exercida pelo Romano
Pontífice não foi dada por ele a si mesmo. Pelo contrário, é o Espírito Santo
quem escolhe o Papa, usando critérios divinos: "Não fostes vós que Me
escolhestes, mas Eu vos escolhi e vos constituí para que vades e produzais
fruto, e o vosso fruto permaneça" (Jo 15, 16).
A santidade de um Papa,
portanto, não é inerente ao ministério petrino, mas provém do esforço pessoal
e, sobretudo, da ação da graça. As eventuais infidelidades na vida de qualquer
Pontífice Romano serão sempre gravíssimas, mas não abolem sua autoridade, já
que Deus pode servir-Se de instrumentos infiéis, e o Espírito Santo impedirá
com sua assistência que os pecados pessoais ponham em risco a integridade da
Igreja, garantida pela promessa de Nosso Senhor Jesus Cristo: "As portas
do inferno não prevalecerão contra ela" (Mt 16, 18).
Quis a Segunda Pessoa da
Santíssima Trindade, ao fundar a sua Igreja, estabelecer como chefe supremo um
homem pecável, mas infalível em matéria de Fé e moral. Isto que foi aceito pelo
consensus fidelium sem restrição, forma com a pessoa e o primado de Pedro uma
feliz união fundada na caridade e na fé.
A Festa da Cátedra de Pedro
A Igreja celebra a festa de São
Pedro em dois dias diferentes:
em 29 de junho, junto com São
Paulo, e em 22 de fevereiro, a Cátedra de Pedro. A antiquíssima origem desta última
festa está documentada por sua inclusão num calendário do ano 354 e no
Martyrologium Hieronymianum, o mais antigo da Igreja Latina, composto entre 431
e 450. Há também referências a ela em duas homilias do século V.
Essa longa existência mostra a
relevância do símbolo da Cátedra para a vida da Igreja e reforça com o
testemunho da Tradição a importância dada ao primado petrino, pelo menos a partir
de meados do século IV, pois, segundo explica o Martyrologium Romanum, a Sé de
Pedro é "chamada a presidir a comunhão universal da caridade". O
Missal Romano acrescenta que a comemoração da Cátedra de São Pedro põe em
relevo a missão de mestre e de pastor conferida por Cristo a São Pedro que, em
sua pessoa e na de seus sucessores, é fundamento visível da unidade da Igreja.
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