Na
noite de domingo, 3 de maio de 1869, festa do Patrocínio de São José, Dom Bosco
retornou a narração do que tinha visto nos seus sonhos.
-
Devo - principiou - contar-vos outro sonho, que se pode considerar conseqüência
dos que vos narrei na 5ª e na 6ª feira à noite, os quais me deixaram tão
cansado, que dificilmente me podia manter em pé. Chamai-lhes
sonhos ou dai-lhes outro nome...; chamai-lhes como quiserdes.
- Por que não falas?
Voltei-me
para o lugar de onde procedia a voz e vi junto ao meu leito um personagem
distinto. Tendo compreendido o motivo da censura, perguntei-lhe:
- E que deverei dizer a nossos jovens?
- O que viste e te foi dito nos últimos sonhos, e também
o que desejavas conhecer, e que te será revelado na próxima noite.
E
desapareceu.
No
dia seguinte inteiro, estive pensando na péssima noite que haveria de passar; e
chegada a hora, não me decidia a ir dormir. Fiquei lendo, sentado à mesa, até
meia noite. Enchia-me de terror a idéia de ter que presenciar ainda outros
espetáculos terríveis. Fiz, afinal, violência sobre mim mesmo e fui deitar-me.
Para
não dormir tão rapidamente, com temor de que a imaginação me levasse aos
costumeiros sonhos, apoiei o travesseiro na parede, de modo a ficar quase
sentado no leito. Mas, como estava moído de cansaço, sem que me desse conta o
sono logo se apoderou de mim. E eis que de repente vejo no quarto, junto a
minha cama, o homem da noite anterior, o qual me diz:
- Levanta-te e vem comigo!
- Rogo-te, por caridade - lhe respondi - deixa-me
tranqüilo, pois estou cansado demais. Há vários dias sou atormentado pela dor
de dentes. Deixa-me descansar. Tive sonhos espantosos; estou extenuado.
Dizia
isso também porque a aparição desse homem é sempre sinal de grande agitação,
cansaço e terror.
- Levanta-te, que não há tempo a perder! - me respondeu.
Então
levantei-me e segui-o. No caminho, perguntei:
- Aonde me queres levar desta vez?
- Vem e verás.
Conduziu-me
a um lugar onde se estendia uma imensa planície. Olhei à volta, meã de lado
algum conseguia ver os confins dela, de tal forma era ela extensa. Era um
verdadeiro deserto! Não aparecia ser vivo algum. Não se via nem uma planta nem
um rio; a vegetação seca e amarelecida mostrava aspecto desolador. Não sabia
onde me encontrava, nem o que iria fazer. Durante alguns instantes perdi de
vista o guia. Receei me ter perdido. Não estavam comigo nem o Padre Rua, nem o
Padre Francesia, nem ninguém mais. Eis que descubro de novo o amigo, que vinha
a meu encontro. Respirei e lhe perguntei:
- Onde estou?
- Vem comigo e verás.
- Bem, irei contigo.
Caminhava
ele na frente e eu o seguia em silêncio. Após uma longa e triste caminhada,
pensando que precisaria atravessar toda a imensa planície, dizia para mim
mesmo:
- Pobres de meus dentes! Pobre de mim, com as pernas
inchadas!...
De
repente, sem saber como, aparece diante de mim uma estrada. Rompi então o
silêncio, perguntando ao meu guia:
- Aonde vamos agora?
- Por aqui - respondeu-me.
E
nos encaminhamos por aquela estrada. Era bonita, larga, espaçosa e bem
pavimentada. Via peccantium complanata lapidibus, et in fine illorum inferi, et
tenebrae, et poenae (Eclesiástico, 21, 11) [O caminho dos pecadores é muito bem
pavimentado, mas no final dele estão o inferno, as trevas e os castigos].
Nos
dois lados do caminho, havia duas belíssimas sebes, verdes e cobertas de flores
encantadoras. As rosas, especialmente, brotavam por todas as partes entres as
folhas. + primeira vista esse caminho parecia plano e cômodo; e sem suspeitar
de nada, me pus a caminhar por ele. Mas à medida que prosseguia, notei que ia
imperceptivelmente declinado e, ainda que não parecesse muito rápida e descida,
sem embargo disso eu corria a uma tal velocidade que parecia estar sendo levado
pelo vento. Mais ainda, dei-me conta de que avançava quase sem mover os pés,
tão rápida era nossa carreira. Refletindo que retornar depois por uma estrada
tão longa me custaria grande esforço e fadiga, perguntei ao amigo:
- Como é que faremos para voltar depois ao Oratório?
- Não te preocupes - me respondeu - o Senhor é onipotente
e quer que tu vás. Quem te conduz e te mostra como ir para a frente saberá
também reconduzir-te de volta.
O
caminho baixava sempre. Continuávamos nosso trajeto por entre flores e rosas,
quando, pelo mesmo caminho, vi os meninos do Oratório, juntamente com
muitíssimos outros companheiros que eu jamais vira antes, caminhando atrás de
mim. E encontrei-me no meio deles. Enquanto os observava, de repente vejo que
ora um, oura outro, caíam, e em seguida eram arrastados por uma força invisível
rumo a uma horrível encosta que se entrevia à distância, a qual depois vi que
ia dar numa fornalha. Perguntei a meu companheiro:
- Que é que faz cair esses jovens? Funes extenderunt in
laqueum; iuxta iter scandalum posuerunt (Salmo 139) [Estenderam cordas à
maneira de rede; junto do caminho puseram tropeços].
- Aproxima-te um pouco mais - respondeu.
Aproximei-me
e vi que os meninos passavam entre muitos laços, alguns postos à altura do
chão, outros à altura da cabeça; estes últimos não se viam. Dessa forma, muitos
jovens, enquanto caminhavam sem dar-se conta do perigo, eram colhidos pelos
laços; no momento de ser colhidos davam um salto, depois caíam no solo com as
pernas para o ar e, levantando-se, se punham em desabalada corrida para o
abismo. Um era agarrado pela cabeça, outro pelo pescoço, outro pelas mãos, por
um braço, por uma perna, pela cintura, e imediatamente depois eram arrastados.
Os laços estendidos pela terra, que mal se podiam ver, eram parecidos com
estopa. Lembravam uns fios de aranha, e não pareciam muito nocivos. Sem
embargo, vi que também os jovens colhidos por tais laços caíam quase todos por
terra.
Eu
estava espantado. E o guia me disse:
- Sabes o que é isso?
- Um pouco de estopa, não mais do que isso - respondi.
- Menos ainda do que isso; é quase nada - acrescentou. +
apenas o respeito humano.
Vendo,
entretanto, que muitos continuavam a se enredar nesses laços, perguntei:
- Mas como é que tantos ficam atados por meio desses
fios? Quem é que tantos ficam atados por meio desses fios? Quem é que os
arrasta desse modo?
- Aproxima-te mais, olha e verás.
Olhei
um pouco e disse: - Não estou vendo nada.
- Olha um pouco melhor - repetiu.
Segurei
então um dos laços, puxei-o para mim e notei que sua ponta não aparecia; puxei
um pouco mais, mas não conseguia ver onde é que terminava aquele fio; pelo
contrário, notei que também a mim ele me arrastava. Segui então o fio e cheguei
à boca de uma espantosa caverna. Parei, porque não queria entrar naquela
voragem; puxei para mim o fio e percebi que ele cedia um pouquinho. Mas era
necessário fazer muita força. Depois de muito puxar, pouco a pouco foi saindo
fora da caverna um feio e grande monstro que causava repugnância e segurava
fortemente um cabo ao qual estavam atados todos os laços. Era ele que, mal caía
alguém na rede, imediatamente o puxava para si.
- + inútil - pensei comigo - competir em força com este
monstro medonho, porque não sou capaz de vence-lo; o melhor é combate-lo com o
sinal da Santa Cruz e com jaculatórias.
Voltei,
pois, para junto do meu guia, e ele me disse:
- Já sabes agora o que é?
- Sim! Já sei, é o demônio que estende esses laços para
fazer meus jovens caírem no Inferno.
Observei
então com atenção os muitos laços e vi que cada um deles lavava escrito seu
próprio título: laço da soberba, da desobediência, da inveja, da impureza, do
roubo, da gula, da preguiça, da ira etc.
Feito
isso, coloquei-me um pouco atrás para observar quais daqueles laços colhiam
maior número de jovens. Eram os da impureza, da desobediência e do orgulho. A
este último estavam atados os outros dois. Além desses vi muitos outros laços
que faziam grande estrago, mas não tanto como os primeiros. Sem parar de
observar, vi que muitos jovens corriam mais precipitadamente que outros, e
perguntei:
- Por que essa velocidade?
- Porque - foi-me respondido - são arrastados pelos laços
do respeito humano.
Olhando
ainda mais atentamente, vi que por entre os laços havia muitas facas
espalhadas, ali colocadas por mão providencial, e serviam para corta-los e
rompe-los. A faca maior era contra o laço do orgulho, e representava a
meditação. Outra faca também grande, mas um pouco menor, significava a leitura
espiritual bem feita. Havia também duas espadas. Uma delas indicava a devoção
ao Santíssimo Sacramento, especialmente com a Comunhão freqüente; a outra, a
devoção a Nossa Senhora. Havia também um martelo: a confissão. Havia outras
facas, símbolo das várias devoções: a São José, a São Luís de Gonzaga etc. etc.
Com estas armas não poucos rompiam os laços quando eram presos, ou se defendiam
para não serem atados.
Vi,
com efeito, jovens que passavam entre os laços sem nunca serem colhidos: ou
passavam antes que o laço caísse, ou sabiam esquiva-lo e o laço escorregava
sobre os ombros, sobre as costas, de um lado ou de outro, sem, contudo poder
aprisiona-los.
Quando
o guia se deu conta de que eu havia observado tudo, fez-me continuar o caminho
bordado de rosas que, à medida que avançávamos, iam-se tornando mais raras, ao
passo que começavam a se fazer notar enormes espinhos.
Chegamos
a um ponto em que, por mais que olhasse, já não encontrava rosa alguma, e no
final as sebes se haviam tornado só de espinhos, desfolhadas e secas pelo sol.
Das moitas dispersas e ressecadas partiam galhos que serpenteavam pelo solo e
impediam o caminho, semeando-o de tal maneira com espinhos que só com grande
dificuldade se podia andar.
Havíamos
chegado a uma baixada cujas ribanceiras ocultavam as demais regiões vizinhas; o
caminho, sempre em declive, se tornava cada vez mais horrível, sem
pavimentação, cheio de buracos, degraus, pedras e rochas arredondadas.
Havia
perdido de vista a todos os meus jovens, muitíssimos dos quais haviam saído
daquele caminho traiçoeiro para tomar outros rumos.
Continuei
caminhando. Quanto mais avançava, mais áspera e rápida era a descida, de modo
que às vezes resvalava e caía por terra, onde ficava um pouco para retomar o
fôlego. De tempos em tempos o guia me sustentava e me ajudava a levantar. A
cada passo as articulações se me dobravam e parecia que meu ossos se iam
desconjuntar. Ofegante, eu dizia ao que me guiava:
- Meu amigo, minhas pernas já não podem me sustentar:
estou tão esgotado que me é impossível prosseguir a caminhada.
O
guia não respondeu, mas fazendo-me sinal para ter ânimo continuou o caminho;
até que, vendo-me suado e morto de cansaço, conduziu-me a um patamarzinho que
havia na entrada. Sentei-me, respirei profundamente e me pareceu descansar um
pouco. Eu olhava entrementes o caminho percorrido: parecia quase vertical,
semeado de espinhos e pedras pontiagudas. Olhava depois o caminho que ainda
devia percorrer e fechava os olhos aturdido. Por fim, exclamei:
- Por caridade, voltemos par trás. Se continuamos
adiante, como faremos para retornar ao Oratório? Serme-á impossível subir essa
encosta.
O
guia respondeu resolutamente:
- Agora que chegamos a este ponto, queres que te deixe
só?
Diante
da ameaça, exclamei em tom dolorido: - Sem ti, como poderei voltar para trás ou
continuar a viagem.
- Pois bem, segue-me - acrescentou.
Levantei-me
e continuamos descendo. O caminho se tornava cada vez mais espantoso e
intransitável, de modo que mal podia manter-me em pé.
Eis
que no fundo desse precipício, que terminava num vale sombrio, apareceu um
imenso edifício que exibia, diante de nosso caminho, uma porta altíssima,
fechada. Chegamos ao fundo do precipício. Um calor sufocante me oprimia e uma
densa fumaça esverdeada se elevava em torno das muralhas, marcadas por chamas
cor de sangue. Levantei os olhos para ver a altura dos muros; eram mais altos
que uma montanha. Perguntei ao guia:
- Onde é que nos encontramos? Que é isso?
- Lê naquela porta - respondeu - pela inscrição saberás
onde estamos.
Olhei
e vi escrito na porta: Ubi non est redemptio [onde não há redenção]. Dei-me
conta de que estávamos na porta do Inferno.
O
guia me levou a fazer o contorno das muralhas daquela horrível cidade. De
espaço a espaço, a distância regular, via-se uma porta de bronze como a
primeira, também no ponto final de uma espantosa vertente, e todas tinham uma
inscrição latina distinta das anteriores.
Discedite,
maledicti, in ignem aeternum, qui paratus est diabolo et Angelis eius... Omnis
arbor quae non facit fructum bonum excidetur et in ignem mittetur [Afastai-vos,
malditos, ide para o fogo eterno que está preparado para o diabo e seus
anjos... Toda árvore que não der bom fruto será cortada e lançada ao fogo].
Apanhei
um lápis para copiar as inscrições; mas o guia me disse:
- Que estás fazendo?
- Tomo nota destas inscrições.
- Não é preciso; tu as tens todas na Escritura. Algumas
delas até as mandaste colocar nas portas [de teu Oratório].
Diante
de tal espetáculo, eu teria desejado voltar para trás e marchar para o
Oratório; já havia dado alguns passos, mas meu guia nem se moveu. Percorremos
um imenso e profundíssimo barranco e novamente nos encontramos diante da
primeira porta, aos pés da vertente por onde havíamos descido. De repente o
guia recuou e, com o rosto entristecido e desfeito, fez sinal para que me
afastasse, dizendo:
- Observa!
Assustado,
voltei os olhos para trás e vi a uma grande distância, por aquele rapidíssimo
caminho, alguém que caía precipitadamente. Conforme ia se aproximando,
procurava fixar-lhe o rosto; afinal reconheci nele um dos meus jovens. Seus
cabelos, em parte desordenados e eriçados, em parte lançados para trás por
efeito do vento; seus braços, estendidos para adiante em atitude de quem nada
para escapar do naufrágio. Queria parar e não podia. Tropeçava nas pedras
salientes do caminho e elas mesmas serviam para dar-lhe mais impulso na queda.
- Corramos, vamos Pará-lo e ajuda-lo - dizia eu, enquanto
estendia para ele as mãos.
- Não, deixa - dizia-me o guia.
- Por que não posso Pará-lo?
- Não sabes como é terrível a vingança de Deus?
Porventura
crês que és capaz de parar alguém que foge da cólera acesa do Senhor?
Entrementes,
o jovem, voltando a cabeça para trás e olhando com olhos esbugalhados para ver
se a ira de Deus o perseguia, lançava-se ao fundo e ia chocar-se na porta de
bronze, como se em sua fuga não pudesse encontrar melhor refúgio.
- Por que - perguntava eu - aquele jovem olha para trás
com tanto espanto?
- Por que a ira de Deus atravessa todas as portas do
Inferno e vai atormenta-los até em meio do fogo.
De
fato, ante aquele encontrão, com estrondo se abriu a porta. Por trás dela
abriram-se ao mesmo tempo, com estrondo ensurdecedor, duas, dez, cem, mil
portas mais, empurradas pelo jovem que era levado por um torvelinho invisível,
irresistível, velocíssimo. Todas essas portas de bronze, uma defronte à outra,
embora a grande distância, ficavam um instante abertas. Vi no fundo, muito
distante, como que a boca de um grande forno, e enquanto o jovem se precipitava
naquela voragem, elevaram-se bolas de fogo. As portas voltaram a fechar-se com
a mesma rapidez com que se haviam aberto. Tirei então minha caderneta para
escrever o nome e o sobrenome daquele desgraçado, mas o guia, segurando-me pelo
braço, intimou-se:
- Espera e observa novamente.
Olhei
e presenciei outro espetáculo. Vi que por aquela vertente se precipitavam
outros três jovens das nossas casas, os quais, à maneira de três pedras,
rolavam rapidissimamente um após o outro. Tinham os braços abertos e urravam de
terror.
Chegaram
ao fundo e foram bater na primeira porta. No mesmo instante, reconheci todos os
três. A porta se abriu e, por trás delas, as outras mil; os jovens foram
empurrados no compridíssimo corredor, ouviu-se um prolongado rumor infernal,
que se afastava mais e mais, e desapareceram, cerrando-se as portas.
Muitos
outros pouco a pouco foram caindo atrás desses. Vi cair um pobrezinho empurrado
por um pérfido companheiro. Uns caíam sós, outros acompanhados; uns seguros
pelo braço e outros soltos, ainda que bastante juntos uns dos outros. Todos
levavam escrito na fronte o seu pecado. Eu os chamava com grande aflição,
enquanto caíam. Mas os jovens não me ouviam; retumbavam as portas infernais ao
abrir-se, fechavam-se depois, e seguia-se um silêncio sepulcral.
- Eis uma das causas principais de tantas condenações -
exclamou meu guia - maus livros, maus companheiros e hábitos perversos.
Os
laços que antes havia visto eram os que arrastavam os jovens ao precipício. Ao
ver caírem tantos deles, disse com voz desolada:
- Mas então é inútil trabalharmos em nossos colégios, se
tantos são os rapazes aos quais aguarda esse fim. Não haverá nenhum outro
remédio para impedir a perda de tantas almas?
Respondeu o guia: - Esse é o estado atual em que se
encontram, e se morressem, para cá viriam sem mais.
- Nesse caso, deixa-me anotar seus nomes para que eu
possa avisa-los e pô-los no caminho do Paraíso.
- E crês que alguns deles, avisado, se corrigiriam?
Num
primeiro momento, o aviso os impressionará; depois o desprezarão, dizendo: "+
um sonho!", e ficarão piores do que antes. Outros, sabendo-se
descobertos, freqüentarão os Sacramentos, mas sem boa vontade e sem mérito,
porque não o farão bem. Outros se confessarão, mas só por temor momentâneo do
Inferno, sem arrancar de seu coração o afeto ao pecado.
- Não há, então, remédio para esses desgraçados? Dá-me um
remédio que possa salva-los.
- Eles têm superiores: que lhes obedeçam! Têm um
regulamento: que o observem! Têm os Sacramentos: que os freqüentem!
Nesse
meio tempo, precipitou-se outro bando de jovens, e as portas ficaram abertas
por uns instantes.
- Entra tu também - me disse o guia.
Retrocedi
horrorizado. Estava com a idéia de que devia voltar logo ao Oratório para
avisar os jovens e segura-los pra que nenhum se perdesse. Mas o guia insistiu:
- Vem, e aprenderás muitas coisas. Diz-me, antes, porém:
queres ir só ou acompanhado?
Disse
isso para que eu reconhecesse a insuficiência de minhas forças, e ao mesmo tempo
a necessidade de sua benévola assistência. Respondi:
- Só?! A esse lugar de horrores?! Sem ser ajudado por tua
bondade?! Quem é que me poderia ensinar o caminho de volta?
Mas
no mesmo instante senti-me cheio de coragem, pensando comigo mesmo:
- Só pode ir para o Inferno quem já foi julgado, e eu
ainda não o fui.
Em
conseqüência, exclamei resoluto:
- Entremos, pois!
Adentramos
aquele estreito e horrível corredor. Corríamos com a velocidade do relâmpago.
Em cada uma das portas interiores brilhava com tétrica luz uma inscrição
ameaçadora. Quando terminamos de percorre-lo, fomos parar num vasto e tenebroso
pátio, em cujo o fundo via-se uma grossa e horrível portinha, como jamais vi
igual, e nela estava escrita estas palavras: Ibunt impii in ignem aeternum [Os
ímpios irão para o fogo eterno]. Todas as paredes em volta estavam cheias de
inscrições. Pedi permissão para o guia para lê-las, e me respondeu:
- A vontade.
- Então examinei tudo. Num lugar, vi escrito: Dabo ignem
in carnes eorum ut comburantur in sempiternum [Darei fogo a suas carnes para
que queime eternamente]. Cruciabuntur die ac nocte in saecula saeculorum [Serão
atormentados dia e noite pelos séculos dos séculos]. Noutro lugar: Hic
universitas malorum per omnia saecula saeculorum [Aqui está o conjunto dos
moles pelos séculos dos séculos]. E noutro: Nullus est hic ordo, sed horror
sempiternus inhabitat [Aqui não há ordem, mas habita horror eterno]. Fumus
tormentorum suorum in aeternum ascendit [Eternamente estará subindo o fumo de
seus tormentos]. Non est pax impiis [Não há paz para os ímpios]. Clamor et
stridor dentium [Clamor e ranger de dentes].
Enquanto
eu estava lendo as inscrições a volta, o guia, que havia ficado no meio do
pátio, aproximou-se e me disse :
- A partir daqui ninguém mais poderá ter um companheiro
que o sustente, um amigo que o conforte, um coração que o ame, um olhar
compassivo, uma palavra benévola; passamos a linha. Queres ver ou experimentar?
- Só quero ver - Respondi.
- Vem, então - acrescentou o amigo, e tomou-me pela mão.
Levou-me
assim adiante daquela portinha e abriu-a . comunicava com um espaço em cujo
fundo havia uma grande cova fechada com uma ampla janela de um só cristal que
ia desde o piso até o teto, e através do qual se podia divisar o interior. Dei
um passo para trás e retrocedi até o umbral da porta, tomado por indescritível
terror.
Apareceu
diante de meus olhos uma espécie de imensa caverna que se perdia como que nas
entranhas da montanha, cheias de fogo, não comovemos na terra, com chamas
vivas, mas um fogo tal e tão ardente que tudo o que havia em torno estava
torrado e embranquecido pelo excessivo calor. Paredes, tetos, chão, ferro,
pedra, lenha, carvão, tudo estava branco e incandescente. Com certeza o fogo
era de milhares e milhares de graus de calor; mas nada se reduzia as cinzas,
nada se consumia.
Não
sou capaz de descrever aquela caverna em toda a sua espantosa realidade.
Praeparata est enim ab hero Thopheth, a rege praeparata, profunda et dilatata.
Nutrimentum eius, ignis et ligna multa: flatus Domini sicut torrens sulphuris
succendens eam (Isaías, 30, 33) [Desde muito tempo, foi Thopheth preparada por
seu dono, foi preparada pelo rei, profunda e larga. Seu alimento é fogo e muita
lenha; o sopro do Senhor, como uma torrente de enxofre, a mantém acesa].
Enquanto
eu olhava tudo aquilo estarrecido, vejo inesperadamente cair com fúria
incoercível um jovem que, lançando um grito lancinante, como o de uma pessoa,
que estivesse a ponto de cair num lago de bronze derretido, se precipita no
meio do fogo, torna-se incandescente como toda a caverna e fica imóvel,
ressoando por uns instantes o eco de sua voz agoniada.
Cheio
de horror, fechei os olhos no jovem, e pareceu-me um do oratório, um de meus
filhos!
- Mas, não é este um de meus rapazes? - Perguntei ao guia
- Não é fulano de tal?
- Sim, é ele - Me respondeu.
- E porque - Acrescentei - Não muda de posição? Como é
que esta assim incandescente e não se consome?
- Preferiste ver, por isso agora não me fales. Olha e
verás. Ademais, omnis enim igne salietur et omnis victima sale salietur (S.
Marcos, 14, 15) [Será salgado com fogo e toda vítima se condimentará com sal].
Mal
havia voltado os olhos, quando outro jovem, com furor desesperado e grandíssima
velocidade, corre e se precipita na mesma caverna. Também era do oratório. Mal
caiu, já não se moveu mais; também ele havia lançado um grito lancinante, e sua
voz se havia confundido, com o ultimo eco do grito do que cairá antes.
Chegaram
depois outros igualmente precipitados; seu numero aumentava cada vez mais,
todos lançavam o mesmo grito e ficavam imóveis incandescentes, como os que os
tinham precedido.
Observei
que o primeiro teria ficado com a mão no ar e com o pé também suspenso no alto
o segundo havia ficado como que dobrado para baixo. Uns tinham os pés no ar;
outros, a cara contra o solo; outros, estavam como que suspensos,
sustentando-se com um só pé e com uma só mão. Havia os sentados ou estendidos,
apoiados de um lado em pé ou de joelhos, com as mãos entre os cabelos. Havia,
por fim, um grande número de jovens como estatuas, em posições cada qual mais
dolorosa.
Vieram
ainda muitos mais aquela fornalha. Jovens que em parte eu conhecia e em parte
eram desconhecidos. Lembrei-me então do que está escrito na Bíblia: como se cai
pela primeira vez no inferno, assim se estará eternamente. Lignum, in quocumque
loco ceciderit, ibi erit [onde cair a árvore, ali ficará].
Aumentava
em mim o espanto, e perguntei ao guia:
- Mas esses que ocorrem com tanta velocidade, não sabem
que vem ter aqui?
- Oh, sim! Sabem que vão para o fogo! Foram avisado mil
vezes, mas correm voluntariamente por causa do pecado, que não detesta e não
querem abandonar, porque desprezaram e rechaçaram a misericórdia de Deus que
incessantemente os chamava a penitência. Por isso a justiça Divina, provocada,
os empurra, os insta, os persegue e não podem parar enquanto não chegam a este
lugar.
Qual não deve ser o desespero destes desgraçados sem a
menor esperança de sair daqui! - Exclamei. - Queres conhecer as inquietações e
os furores das almas deles? Aproxima-te um pouco mais - Respondeu o guia.
Dei
alguns passos para a janela, e vi que muitos daqueles miseráveis se golpeava e
feriam uns aos outros e se mordiam como cães raivosos; outros se arranhavam o
rosto, se laceravam as mãos, despedaçavam as próprias carnes e as atiravam pelo
ar com desprezo. De repente, o teto da caverna se tornou transparente, como de
cristal, e através dele se via um pedaço do céu e as radiantes figuras de seus
companheiros para sempre salvos.
Os
condenados bramiam com feroz inveja, porque os justos haviam sido olhados por
ele, em certo tempo, como objeto de irrisão. Peccator videbit et irascetur;
dentibus suis fremet et tabescet [O pecador verá e se encolerizará a seus
dentes rangerão].
- Diz-me - Perguntei a meu guia - Como é que não se ouve
nenhuma voz?
- Aproxima-te ainda mais - me gritou.
Aproximei-me
do cristal da janela e ouvi que uns rugiam e choravam contorcendo-se; outros
blasfemavam e imprecavam os santos. Aquilo tudo era um caos de vozes e gritos
autos e confusos, pelo que perguntei ao meu amigo:
Que
dizem eles? Que estão gritando?
- Recordando a sorte de seus companheiros bons, vêem-se
obrigados a confessar: Nos insensati! Vitam illorum aestimabamus insaniam et
finem illorum sine honoré [Nós, insensatos considerávamos uma loucura a vida
que levavam, e seu fim sem honra]. Ecce quomodo computati sunt inter filios Dei
et inter sanctos sors illorum est. Ergo erravimus a via veritatis [Eis que
foram contados no numero dos filhos de Deus e sua sorte juntamente com a dos
santos. Nós nos afastamos, pois, do caminho da verdade].
Por
isso gritam: Lasati sumus in via iniquitatis et perditionis. Erravimus per vias
difficiles, viam autem Domini ignoravimus [Corremos pelo caminho da iniqüidade
e da perdição. Perdemo-nos por caminhos difíceis e não conhecemos o caminho do
Senhor].
Quid
nobis profuit superbia? [De que nos serviu nosso orgulho?]
Transierunt
omnia illa tanquam umbra [Tudo passou como uma sombra].
Estes
são os lúgubres cantos que ali ressoarão por toda a eternidade. Mas inúteis
gritos, inúteis esforços, inútil pranto! Omnis dolor irruet super eos! [Toda a
dor cairá sobre eles]. Aqui já não há tempo, há só eternidade.
Enquanto
contemplava, cheio de horror, o estado de muitos de meus jovens, assaltou-me
imprevistamente uma idéia:
- Mas como é possível que os que se encontram aqui
estejam todos condenados? Estes jovens estavam ontem à tarde vivos no Oratório.
O amigo me disse: - Os que aqui vês vivem, mas estão
mortos para a graça de Deus, e se morressem agora ou continuassem procedendo
como no presente, se condenariam. Mas não percamos tempo; sigamos adiante.
E me
afastou daquele lugar, e por um corredor que baixava a um profundo subterrâneo
me conduziu a outro em cuja entrada estava escrito:
Vermis eorum non moritur, et ignis non extinguitur... Dabit
Dominus omnipotens ignem et vermes in carnes eorum, ut urantur et sentiant
usque in sempiternum (Judite 16, 21) [ Seu verme não morrerá e o fogo não se
extinguirá... O Senhor onipotente dará fogo e vermes a suas carnes para que
ardam e sofram eternamente].
Ali
se contemplava o espetáculo dos atrozes remorsos dos que foram educados em
nossas casas.
A
recordação de todos e de cada um dos pecados não perdoados e sua justa
condenação! A de terem tido mil remédios até mesmo extraordinários para se
converterem ao Senhor, para serem perseverantes no bem, para ganharem o
paraíso! A recordação de tantas graças prometidas, oferecidas e dadas por Maria
Santíssima e não correspondidas! Terem podido se salvar com tão pouco esforço e
perderem-se irremissivelmente para sempre! Lembrarem de tantos bons propósitos
feitos e não compridos! Ah! Bem diz o provérbio que o inferno está cheia de
boas intenções não realizadas!
Ali
voltei a ver todos os jovens do oratório que havia visto pouco antes naquele
forno (Alguns dos quais me estão ouvindo neste momento; outros já estiveram
conosco, outros eu não conhecia). Aproximei-me e observei que todos estavam
cheios de vermes e animais asquerosos que lhes roíam e consumiam o coração, os
olhos, as mãos, as pernas, os braços, de maneira tão miserável que nem sei
exprimir com palavras. Estavam imóveis, expostos a toda espécie de moléstias, e
não podiam defender-se de modo algum.
Aproximei-me
ainda mais para que me vissem esperando poder falar-lhes para que me dissessem
algo, mas nenhum falava e nem me olhava. Perguntei então ao guia a causa disso,
e me foi respondido que no outro mundo os condenados não tem liberdade. Cada um
sofre ali todo o castigo que Deus lhe impôs, sem que possa haver mutação de
espécie alguma.
- Agora é preciso - Acrescentou - que também tu vás ao
meio daquela região de fogo que viste.
- Não, não! - Respondi aterrorizado - Para ir ao inferno
é preciso ser antes julgado; eu ainda não o fui. Não quero, pois, ir ao inferno.
- Diz-me - observou o amigo - o que te parece melhor; ir
ao inferno e livrar teus jovens, ou ficares fora e deixa-los no meio de tantos
tormentos?
- Atordoados diante desta proposta, respondi:
- Oh! Quero muito a meus caros jovens, quero que todos se
salvem. Mas não poderíamos fazer de tal forma que nem eles nem eu entremos ai?
- Ainda estas em tempo - me respondeu o amigo - e também
eles estão, desde que faças tudo o que podes.
Meu
coração se dilatou e eu disse para mim mesmo:
- Pouco me importa sofrer, desde que possa livrar dos
tormentos estes meus queridos filhos.
- Vem, pois, dentro - prosseguiu o amigo. E vê a bondade
e a onipotência de Deus, que amorosamente emprega mil meios de chamar a
penitência teus jovens e salva-lo da morte eterna.
Tomou-me
pela mão para introduzir-me na caverna, mal pus os pés no umbral encontrei
inesperadamente transportado para uma magnífica sala com porta de cristal.
Sobre estas, a regular distancias pendiam largos véus que cobriam outros tantos
departamentos que comunicavam com a caverna.
O
guia me indicou um dos véus, sobre o qual estava escrito "Sexto
Mandamento", e exclamou:
- A transgressão desse Mandamento é a causa da ruína
eterna de muitos jovens.
- Mas não se confessaram?
- Sim, confessaram-se, mas os pecados contra a bela
virtude, confessaram-nos mal ou calaram-nos por completo. Por exemplo, um que
havia cometido quatro ou cinco desses pecados, confessou somente dois ou três.
Há quem tenha cometido um só na meninice e sempre teve vergonha de confessa-lo,
ou o confessou mal, ou não disse tudo. Outros não tiveram arrependimento nem
propósito. Mais ainda: alguns, em vez de examinar sua consciência, estudavam o
modo de enganar o confessor. E o que morre com tal resolução está disposto a
ser do número de condenados, e assim será para toda a eternidade. Só os que,
arrependidos de todo o coração, morrem com a esperança da eterna salvação,
esses serão eternamente felizes. E agora queres ver por que a misericórdia de
Deus te conduziu até aqui?
Levantei
o véu e vi um grupo de meninos do Oratório, todos meu conhecidos, condenados
por esse pecado. Entre eles havia alguns que, na aparência, têm boa conduta.
- Pelo menos agora me deixarás escrever os nomes desses
meninos para poder adverti-los em particular.
- Não é preciso - me respondeu.
- Que devo então dizer a eles?
- Prega por toda a parte contra a impureza. Basta
avisa-los em geral, e não te esqueças de que, ainda que os avises em
particular, prometerão, mas nem sempre com firmeza. Para conseguir isso se
requer a graça de Deus, a qual, se pedida, jamais faltará a teus jovens. O bom
Deus manifesta especialmente seu poder em Se compadecer e perdoar. Oração,
pois, e sacrifício de tua parte. Quanto aos jovens, que ouçam tuas exortações,
interroguem suas consciências, e ela lhes sugerirá o que devem fazer.
Estivemos
então conversando cerca de meia hora sobre as condições necessárias para fazer
uma boa confissão. Depois o guia repetiu várias vezes, erguendo a voz:
- Avertere!... Avertere!...
- Que significa essa exclamação?
- Mudar de vida, mudar de vida!...
Todo
confuso por aquela revelação, baixei a cabeça e estava a ponto de me retirar,
quando o guia me chamou dizendo:
- Ainda não viste tudo.
E
dirigindo-se a outra parte, levantou outro véu, sobre o qual estava escrito:
Qui volunt divites fieri, incident in tentationem et laqueum diaboli [Os que
querem ficar ricos, caem na tentação e no laço do demônio].
Li e
exclamei:
- Isso não diz respeito aos meus jovens, porque são
pobres como eu; não somos ricos nem pretendemos sê-lo. Nem sequer o imaginamos.
Removido
o véu, apareceram no fundo alguns meninos, todos meus conhecidos, que sofriam
como os anteriores, e, mostrando-os, me disse:
- Acho que é bem a teus meninos que essa inscrição diz
respeito!
- Explica-me, pois, o porquê da palavra divites [ricos].
- Por exemplo, alguns dos teus jovens têm o coração de
tal maneira apegado a algum objeto material, que esse afeto os afasta do amor
de Deus, e por isso faltam com caridade, a piedade, a mansidão. Não somente com
o uso das riquezas se perverte o coração, mas também com o desejo delas,
sobretudo se esse desejo ofende a justiça. Teus jovens são pobres, mas repara
que a gula e o ócio são péssimos conselheiros. Há alguns que em seus lugares de
origem se tornaram culpados de furtos significativos e, podendo, não penso em restituir. Há quem
estuda a maneira de abrir com chaves falsas a dispensa; quem procura entrar no
escritório do prefeito ou do ecônomo da casa; quem vai remexer as malas dos
companheiros para roubar-lhes comestíveis, dinheiro ou livros para seu uso...
De
uns e de outros me disse os nomes, e prosseguiu:
- Alguns se encontram aqui por se terem apropriado de
objetos do vestuário, roupa branca, cobertores e colchas que pertenciam à
rouparia do Oratório, para envia-los a suas casas. Alguns, por terem causado
voluntariamente danos graves e não os terem reparado. Outros, por não terem
devolvido coisas que lhes haviam sido emprestadas; e alguns por terem retido
somas de dinheiro que lhes haviam sido confiadas para que as entregassem ao
superior. E concluiu dizendo:
- Já que tais pessoas te foram indicadas, avisa-as;
diz-lhes que rejeitem todos os desejos inúteis e nocivos, que sejam obedientes
à lei de Deus e zelosos de sua honra; se não forem assim, a cobiça os arrastará
a excessos piores que os submergirão nas dores, na morte, na perdição.
Eu
não conseguia entender como, para certas coisas consideradas insignificantes
pelos nossos jovens, haviam sido preparados castigos tão horríveis. Mas o amigo
cortou minhas reflexões, dizendo:
- Recorda o que te foi dito diante do espetáculo dos
cachos estragados da videira.
E
levantou outro véu, que ocultava muitos de nossos jovens, os quais logo
reconheci, pois estão presentemente no Oratório. Sobre o véu estava escrito:
Radix omnium malorum [Raiz de todos os males]. E logo me perguntou:
- Sabes o que significa isso? Sabes qual é o pecado
indicado por essa epígrafe?
- Parece-me que só pode ser o do orgulho.
- Não - respondeu.
- Mas sempre ouvi dizer que o orgulho é a raiz de todo o
pecado.
- Sim, genericamente é; mas, em concreto, sabes qual foi
o pecado que fez cair Adão e Eva no primeiro pecado, em conseqüência do qual
foram expulsos do Paraíso terrestre?
- A desobediência.
- Precisamente; a desobediência é a raiz de todo o mal.
- E que devo dizer a meus jovens sobre esse ponto?
- Presta atenção: os jovens que tu vês aqui são os
desobedientes, que vão preparando para si próprios tão lamentável fim. Esses
tais e outros que tu crês que foram descansar, à noite descem a passear no
pátio; não fazendo caso das proibições, vão a lugares perigosos, trepam nos
andaimes de obras em construção, pondo em risco até a própria vida. Alguns,
apesar das prescrições do regulamento, na igreja não estão como devem; em vez de
rezarem, pensam em coisas completamente diversas, constroem na sua mente
castelos no ar. Outros perturbam os companheiros. Há os que procuram posturas
cômodas e dormem durante as sagradas funções. Outros, tu crês que vão à igreja
e no entanto não vão. Ai do que descuida a oração! Quem não reza se condena!
Alguns estão aqui porque, em vez de cantar os cânticos sagrados ou o ofício da
Santíssima Virgem, lêem livros que tratam de tudo menos de religião, e alguns -
o que é muito vergonhoso! - chegam a ler livros proibidos.
E
continuou enumerando várias outras transgressões que são causa de graves
desordens. Quando terminou, comovido olhei o guia na face; ele também me fitou,
e eu lhe disse:
- E todas essas coisas, poderei contá-las a meus jovens?
- Sim, podes dizer a todos eles aquilo de que te
recordares.
- E que conselho poderei dar-lhes para que não lhes
sucedam tão graves desgraças?
- Insistirás demonstrando como a obediência, mesmo nas
menores coisas, a Deus, á Igreja, aos pais e aos superiores, os salvará.
- E que mais?
- Dirás a teus jovens que evitem muito o ócio, porque
essa foi a causa do pecado de Davi. Diz-lhes que estejam sempre ocupados,
porque assim o demônio não terá tempo de assalta-los.
Inclinei
a cabeça e prometi. Não mais suportando aquele terror, disse o amigo:
- Agradeço-te a caridade que tiveste comigo, mas rogo-te
que me faças sair daqui.
- Vem comigo - disse-me então - e, encorajando-me,
tomou-me pela mão e sustentou-me, porque eu me sentia extenuado e sem forças.
Uma vez saídos da sala, atravessamos rapidamente o horrível pátio e o largo
corredor de entrada; antes de atravessar o umbral da última porta de bronze,
mais uma vez voltou-se para mim e exclamou:
- Agora que viste os tormentos dos outros, é preciso que
tu também experimentes um pouco o Inferno.
- Não! Não! - gritei horrorizado.
Ele
insistia e eu recusava sempre.
- Não temas - dizia-me - é só para experimentar; toca
nessa muralha.
Eu
não tinha coragem e queria afastar-me; mas ele me segurou, dizendo-me:
- No entanto, é necessário que experimentes!
E me
agarrou resolutamente pelo braço e me levou para junto da muralha, dizendo:
- Toca rapidamente uma vez só, para que possas dizer que
estiveste visitando as muralhas dos suplícios eternos e as tocaste; e também
para que compreendas como será a última muralha, se a primeira já é tão
terrível. Vês esta muralha?
Observei-a
com mais atenção; era de colossal espessura. O guia prosseguiu:
- Esta é a milésima parede antes de chegar ao verdadeiro
fogo do inferno. Mil muralhas o rodeiam. Cada uma delas tem mil medidas de
espessura, e essa é a distância entre cada uma delas; cada medida é de mil
milhas; esta muralha dista, pois, um milhão de milhas do verdadeiro fogo do
Inferno e, portanto, é um pequeníssimo princípio do mesmo Inferno.
Dito
isso, e vendo que eu me encolhia para não tocar a muralha, agarrou minha mão,
abriu-a com força e fez com que eu a encostasse na pedra daquela milésima
muralha. Naquele instante senti uma queimadura tão intensa e dolorosa que,
saltando para trás e dando um fortíssimo grito, acordei.
Encontrei-me
sentado na cama, e sentindo que a mão ardia, esfregava-a na outra mão para
fazer cessar aquela sensação. Quando amanheceu, observei que a mão estava
realmente inchada; e a impressão imaginária daquele fogo foi tão forte que
pouco depois a pele da palma da mão se desprendeu e mudou.
Tende
em consideração que não vos contei estas coisas com todo o seu horror tal como
as vi, e com a impressão que me fizeram, para não vos assustar demais. Sabemos
que o Senhor nunca falou do inferno a não ser por figuras, porque, ainda quando
no-lo houvesse descrito como é, não o teríamos entendido. Nenhum mortal pode
compreender essas coisas. O Senhor as conhece e pode dize-las a quem quiser.
Várias
noites sucessivas tive tal perturbação, que não pude dormir por causa do medo.
Contei-vos
brevemente o que vi em sonhos muito longos; deles não vos fiz senão um breve
resumo. Darei mais tarde instruções sobre o respeito humano, sobre o sexto e o
sétimo Mandamentos, sobre o orgulho. Não farei mais do que explicar esses
sonhos; porque em tudo estão conformes com a Sagrada Escritura; ainda mais, não
são senão um comentário do que se lê sobre o tema na mesma Escritura.
Nestas
noites, já vos contei algumas coisas, mas quando puder vir falar-vos
contar-vos-ei as restantes, dando- vos as respectivas explicações.
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