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terça-feira, 2 de dezembro de 2014

O INÍCIO DO FRANCISCANISMO E OS DESAFIOS NO SEU PRIMEIRO SÉCULO DE EXISTÊNCIA !!!


por Frei Miguel Negreiros, OFMCap
(in “Cadernos de Espiritualidade Franciscana”, nº 6, pp. 17-26)
Se é verdade que falar em Franciscanismo é falar em São Francisco, assim como falar em Cristianismo é falar em Jesus Cristo, também é verdade que há uma história do Franciscanismo, para além da pessoa de São Francisco. Foi-me pedido que tratasse do 1º século da história do Franciscanismo. Vou dividir a minha exposição em três partes: antes, durante e depois de São Boaventura. A primeira parte abrange o período que vai da simples fraternidade primitiva até à estruturação da Ordem. A segunda parte coincide com o generalato de São Boaventura. A terceira compreende o tempo que se segue até à ruptura dos "Espirituais".
1 - DA SIMPLES FRATERNIDADE À ESTRUTURAÇÃO DA ORDEM
Por influência dos Ministros e dos Irmãos letrados, bem como dos privilégios concedidos pela Santa Sé, a Ordem Franciscana, logo após a morte de São Francisco, entrou numa fase de forte organização interna que já não se compadecia com a simplicidade da vida inicial. No ano seguinte à morte de São Francisco, no Capítulo de 1227, foi eleito Geral o Ministro Provincial de Espanha, Frei João Parente, que procurou harmonizar a fidelidade ao genuíno espírito de São Francisco com as aspirações e reivindicações dos letrados. Muitos irmãos se assustaram com as mudanças e o encaminhamento da Ordem que tendia para uma clericalização e isenção da mesma, frente à hierarquia. Cresceu entre eles o temor de infidelidade à Regra de São Francisco. É que os irmãos inovadores pretendiam uma interpretação da Regra, sancionada pela autoridade da Igreja, a fim de a melhor compreender e observar. Não compreendiam em que medida estavam "obrigados" a observar o Evangelho, e como era possível compaginar a pobreza absoluta com a necessidade de possuir alguns bens imprescindíveis para o progresso da Ordem. Para este progresso, os letrados esbarravam com duas dificuldades: o Testamento de São Francisco e a oposição secular. É nesta altura que aparece a Bula "Quo Elongati" de Gregório IX, em 1230, como primeira Declaração Pontifícia da Regra. Esta Bula deixou a muitos irmãos desapontados por lhes parecer que estavam a desviar-se da simplicidade do ideal evangélico, tal como São Francisco o tinha consignado na Regra e exposto no Testamento. A Bula, com efeito, declarava que o Testamento não tinha força obrigatória; os Irmãos só estavam obrigados aos conselhos evangélicos expressos na Regra; podiam recorrer aos "amigos Espirituais"; os Irmãos apenas tinham o simples "uso de facto". No ano seguinte a Bula "Nimis iniqua" declara a isenção dos irmãos da jurisdição episcopal.
1.1. A evolução incrementada por Frei Elias
Frei João Parente não foi capaz de conter as exigências revolucionárias dos Ministros e letrados, e veio a suceder-lhe de novo Frei Elias, no Capítulo Geral de 1232. Frei Elias exerceu uma influência decisiva na evolução da Ordem. Muito contestado pelos zelosos observantes da Regra, conseguiu instaurar os estudos e organizar as Missões do Oriente. Empenhou-se em estruturar e engrandecer a Ordem para que esta pudesse rivalizar com as outras grandes Ordens, particularmente com a Beneditina. Decidiu apresentar à Igreja e ao mundo um São Francisco nimbado de glória, e levantou-lhe uma grande Basílica. Para este projeto não teve dificuldade em conseguir toda a espécie de apoios. O próprio Gregório IX, que era, aliás, um grande amigo pessoal e admirador de São Francisco, apadrinhava este empreendimento. Pelo seu carácter absorvente e centralizador, provocou o descontentamento de muitos Provinciais que logo trataram de depô-lo no Capítulo seguinte. Assim, no Capítulo Geral de 1239 foi eleito, em vez de Frei Elias, o Provincial de Inglaterra, Frei Alberto de Pisa. Para obviar aos inconvenientes do absolutismo de Frei Elias, promulgaram-se as primeiras "Constituições" que regulavam a vida dos Irmãos, especialmente dos Irmãos Ministros, e concretamente do Irmão Ministro Geral. Os Capítulos passam a ser a autoridade máxima da Ordem. Em termos de hoje poderíamos dizer que se repôs o espírito democrático. Poucos meses depois, morre Frei Alberto de Pisa e sucede-lhe um mestre da Universidade de Paris, Frei Haymón de Faversham que havia sido a alma do Capítulo de 1239. Foi um verdadeiro precursor de São Boaventura e soube valer-se das experiências positivas dos Irmãos de São Domingos, como por exemplo, no que se refere ao Capítulo dos "definidores".
1.2. - Consequências desta primeira evolução
O movimento de renovação e atualização da Ordem, desencadeado pelos inovadores e apoiado por Frei Elias, fez com que a Ordem se tornasse na primeira força religiosa da Igreja, respaldada pela proteção dos Papas. Ficavam para trás, como saudosas recordações, as experiências heroicas da aventura evangélica dos primeiros companheiros. À simplicidade austera dos primeiros tugúrios verdadeiramente pobrezinhos, e à espontaneidade das relações fraternas dos primeiros irmãos, sucedia-se a centralização nas grandes cidades, com espaçosos conventos. À pobreza, cheia de confiança na Divina Providência, à semelhança das aves do céu e dos lírios dos campos (Mt 6, 25 ss) sucedia a preocupação de obter meios mais estáveis de vida. A organização dos estudos transformou-se numa fortaleza académica. A esmola perde o significado primitivo e substitui o trabalho manual como meio normal de subsistência. Os trabalhos mais humildes são entregues a criados seculares. O regime interno da Ordem adopta o estilo da vida monástica, e entra-se numa administração cada vez mais necessitada de novas justificações jurídicas para poder dispor de dinheiro.
1.3. - A Bula "Ordinem Vestrum"
De novo recorrem ao Papa e obtém de Inocêncio IV a Bula "Ordinem Vestrum" (1245) que permite o recurso aos "amigos espirituais" para as diversas transações pecuniárias e declara que os bens da Ordem são por direito propriedade da Santa Sé, que os administra através de um "procurador". O breve "Quanto Studiosius" que veio pouco depois, alargava mais o poder dos Provinciais em ordem à administração dos bens, através de "homens de confiança" nomeados por eles. O preceito da Regra que dizia "os Irmãos de nada se apropriem" que para São Francisco tinha um sentido nitidamente evangélico, passa a ser interpretado só juridicamente, transformando a pobreza real numa pobreza legal. Com a distinção entre direito de propriedade e simples uso de fato ficava ressalvada a pobreza à face da Lei, mas a Dama Pobreza corria o risco de ser ultrajada com o pecado da infidelidade. Viviam ainda alguns dos primeiros companheiros de São Francisco e a própria Santa Clara que continuamente recordavam a heroicidade da pobreza dos primeiros anos. Gerou-se, então, um movimento de irmãos que reclamavam o direito de viver "espiritualmente" a Regra e por isso se denominaram "Espirituais". Não viam possibilidade de conciliar a fidelidade genuína à Regra com as concessões das Bulas Papais. Ao mesmo tempo, outros irmãos também queriam ser fiéis a São Francisco e à sua Regra, embora aceitando a evolução que consideravam irreversível e a orientação oficial da Ordem. Estes constituíram o grupo chamado da "Comunidade", que funcionavam a modos de uma ala esquerda em confrontação com a ala de extrema direita dos "Espirituais".
1.4. - A Política de Centro ou a Via Intermédia de Crescêncio de Lesi (1244-47)
O Ministro Geral que se segue, Crescêncio de Lesi, de novo recorre à Bula Papal "Ordinem Vestrum" a que já fizemos referência, o que veio a desgostar tanto os "Espirituais" como grande parte dos da "Comunidade". A sua preocupação de manter o meio termo entre uns e outros desgostou, sobretudo os inovadores. Deu-se conta de que a memória de São Francisco ainda era catalizadora e mobilizadora da vocação de todos os irmãos e por isso encarregou Tomás de Celano de escrever uma Segunda Vida de São Francisco que recolhesse todos os dados referentes à vida do Santo Fundador. Tomás de Celano escreveu esta Segunda Vida com preocupações de pacificação e de crítica aos exageros de ambas as partes. Apesar de tudo isto este Geral não conseguiu restabelecer a paz. Vai-lhe suceder João de Parma.
1.5. - O Regresso às Origens (fontes) com João de Parma (1247-57)
João de Parma, eleito no Capítulo Geral de Lião, foi bem recebido por todos, dado o seu prestígio de homem de ciência e de virtude. No seu governo privilegiou o exemplo e a virtude mais do que a ciência. Dele disse Frei Gil: "chegaste em boa hora mas já vens tarde". Tudo fez para se retomar o fervor primitivo e garantir a fidelidade às antigas tradições. Não fez caso das concessões das Bulas Papais. Na luta contra os inimigos de fora aconselhava humildade e mansidão. Insistia na observância da Regra e do Testamento. Embora bem aceite por todos, havia alguns descontentes, por lhes parecer que a Ordem assim não avançava. Acabou por renunciar, também por indicação do Papa Alexandre IV, retirando-se para o eremitério de Greccio, mas recomendou que elegessem para Geral a Boaventura de Bagnoregio, que então era Mestre em Paris.
2 - A ORDEM DURANTE O GENERALATO DE SÃO BOAVENTURA (1257-74)
Não falta quem considere São Boaventura um "Segundo Fundador". E há até quem o acuse de ter desvirtuado a obra de São Francisco. Na verdade, não foi nem uma coisa nem outra. Aceitou a Ordem na sua evolução normal e procurou dinamizá-la com a observância comum da Regra.
2.1. - A Ordem em conflito com algumas forças da Igreja
São Francisco havia ensinado que os Irmãos Menores deviam ser sempre submissos aos Bispos e aos sacerdotes. Bastantes destes, porém, desde o princípio que não viam com bons olhos a autorização concedida pelos Papas aos Franciscanos de exercerem a cura de almas, a ponto de o Papa Gregório IX ter saído em sua defesa. A própria Universidade de Paris se ergueu como adversário da Ordem porque os mestres seculares de Sorbona, capitaneados por Guilherme de Saint'Amour, não queriam aceitar os Dominicanos e Franciscanos como Catedráticos na Universidade. Negavam aos mendicantes o direito de professar a santa pobreza (ensinavam que a mendicância era contrária ao Evangelho), o direito de exercer o ministério pastoral e até o direito de existirem. São Boaventura saiu em defesa da Ordem com os seus dois Tratados:
a) Questões de perfeição evangélica" e,
b) "Apologia dos pobres".
Nos quais estabelece os seguintes princípios:
1. A pobreza voluntária é o mais alto grau de perfeição evangélica.
2. Têm direito a pregar e a ensinar o Evangelho, sobretudo àqueles que o praticam.
3. A pregação é um direito que os irmãos receberam do Papa que é o primeiro pastor próprio de todos os fiéis.
4. Os irmãos têm o direito a viver do Evangelho, isto é, têm direito a mendigar.
2.2. - O Governo Interno da Ordem
Além dos adversários externos, São Boaventura teve de enfrentar outros inimigos, talvez mais fáceis, que se encontravam dentro da Ordem: o movimento dos "Espirituais". Procurou fazer ver a estes que a fiel observância espiritual da Regra - da qual ele por sinal era modelo - era compatível com a evolução da Ordem. Durante o seu generalato adoptou os seguintes critérios que apresentou como orientações dos irmãos:
1. Os Irmãos podem ficar tranquilos com a interpretação da Regra feita pelo Papa, porque este é o pastor supremo da Igreja e da Ordem.
2. São Francisco é o modelo para todos, é a forma dos menores. E por isso ele escreveu a Legenda Maior como biografia oficial da Ordem, apresentando São Francisco como cópia fiel de Cristo crucificado. Afasta-se, no entanto, dos "Espirituais" na interpretação do ideal de minoridade, nomeadamente no que se refere ao trabalho, à insegurança evangélica, ao receio dos estudos, à espontaneidade, etc.
3. A observância regular deve antes de mais ser fiel ao espírito de pobreza que é a maior glória e a principal característica da Ordem. Não foi favorável às mitigações das Bulas Pontifícias, embora aceitando os "procuradores" da Santa Sé. Foi rigoroso em não aceitar dinheiro, mas permitiu algumas discretas provisões de esmolas. Os conventos grandes deviam estar nas cidades.
4. Os estudos e a ciência são necessários aos franciscanos como condição de preparação para poderem pregar.
5. A ação apostólica faz parte essencial da Ordem. Devem-se estabelecer acordos com os Bispos e os párocos, em espírito de minoridade.
6. Só se devem aceitar, no campo do apostolado, os privilégios concedidos a toda a Ordem e não os concedidos a favor de uma Província ou de um religioso.
7. A legislação das Constituições de Narbona, promulgadas no Capítulo Geral de 1260, nada de novo introduzem na vida interna dos Irmãos. O Capítulo Geral continua a ser a máxima autoridade da Ordem.
8. O "Joaquinismo" (Doutrina de Joaquim di Fiore, que um pouco mais à frente explicaremos) foi implacavelmente reprimido.
São Boaventura, durante os 17 anos do seu governo, foi aceite praticamente por todos, devido ao prestígio do seu saber e da sua virtude. Soube harmonizar, com muito tato e equilíbrio, o amor a São Francisco e ao progresso da Ordem; o apreço pelos eremitérios retirados e a aceitação dos grandes conventos nas cidades. Sob a sua orientação, a Ordem sentiu-se internamente segura, exteriormente admirada, e muito apreciada pela Santa Sé que lhe confiava missões importantes.
2.3. - Nova Luta e Nova Defesa da Ordem pela Santa Sé
São Boaventura participou na preparação do Segundo Concílio de Lião e veio a falecer, já Cardeal, durante o mesmo Concílio. Vários padres conciliares propuseram a supressão de todas as Ordens aparecidas após o IV Concílio de Latrão. O Papa Gregório X respondia-lhes: "Vivei como eles vivem, estudai como eles estudam e obtereis os mesmos resultados".
Entretanto, após a morte de São Boaventura, sucederam-lhe Jerónimo de Ascoli e Bonagrazia de São João. A pedido do Geral, o Papa Nicolau III interveio em defesa da Ordem com a Bula "Exiit qui seminat" (1279), retomando toda a argumentação de São Boaventura, pondo em destaque a distinção entre uso de direito e uso de fato. O "uso de fato" é o único permitido e tem de ser um uso pobre. O Sumo Pontífice proibia severamente que alguém falasse ou escrevesse contra os Menores e a sua Regra. Foram depois permitidos os "síndicos apostólicos" como procuradores seculares dos religiosos. Assim uma vez mais se solucionava juridicamente o problema da fidelidade à pobreza.
2.4. - A Discussão à volta dos Privilégios
O Padre Geral Bonagrazia, que tinha obtido do Papa a Bula de defesa da Ordem, recomendava aos seus frades que evitassem toda a polémica com o clero secular. A discussão agora se travava acerca dos privilégios concedidos pelos Papas que autorizavam os Franciscanos a confessar e a pregar, sem necessidade de licença dos Bispos ou dos párocos. Os Bispos Franceses uniram-se para contestar, com decisão e firmeza, os privilégios concedidos pelas Bulas Pontifícias de Martinho IV (1281-85), Honório IV (128587) e Nicolau IV (que tinha sido o Geral que sucedeu a São Boaventura). Bonifácio VIII (1294-1303) com a Bula "Supra Cathedram" procurou determinar sabiamente a relação entre os frades e o clero secular. Os frades, porém, entenderam que tinham sido prejudicados. Sucedeu-lhe Bento XI (1303-04) que de novo foi mais favorável aos religiosos. Isto suscitou nova contenda na qual tomou parte o célebre João Duns Escoto, a defender a posição do Papa. Veio pouco depois o Concílio de Viena (1311-12), em que ficou definida a isenção dos religiosos. Internamente estes apenas devem obediência ao Papa. Enquanto à atividade apostólica fora das suas Igrejas, dependerão dos Bispos e dos sacerdotes seculares.
3 - A QUESTÃO DOS ESPIRITUAIS
3.1. - A influência do Joaquinismo
Após a morte de São Boaventura, estalou violentamente a questão dos "Espirituais" que transpôs o limiar das fronteiras do franciscanismo para se transformar num fenómeno de âmbito eclesial. A primeira confrontação dos religiosos zelantes contra os da "Comunidade" já se tinha verificado durante o governo de Crescêncio de Lesi, vindo progressivamente a avolumar-se até que atingiu proporções de autêntica insurreição, de separação da Ordem e de rebelião contra a Sé Apostólica. A Fundamentação teológica da corrente dos Espirituais encontra-se, de certo modo, na concepção escatológica do Abade Joaquim de Fiore (+ 1202), segundo o qual a história da salvação divide-se em três épocas: a do Pai, a do Filho e a do Espírito Santo. A primeira, a do Pai, que vai de Adão a Cristo, é dirigida pela ordem dos casados ("Ordo conjugatorum"). A segunda, a do Filho, que vai desde Cristo até ao tempo do autor, é dirigida pela ordem dos clérigos ("Ordo clericorum"). A terceira, a do Espírito Santo, deve ser dirigida pela ordem dos monges ("Ordo monachorum"). O Pai impôs a Lei pelo temor. O Filho escolheu a disciplina porque é sabedoria. O Espírito Santo desencadeou a liberdade porque é amor. Com esta terceira etapa foi superada e ultrapassada a igreja da hierarquia, com os seus sacramentos e as suas leis, e foi instaurada a Igreja espiritual: assembleia de alegria, de amor e de liberdade, composta por homens espirituais, pobres e menores, verdadeiros modelos de vida cristã que terão por pastor e guia um Santo Padre, o Pontífice Angélico. Esta etapa será anunciada pela aparição do "Anjo do Sexto Selo" que ostentará "o sinal do Deus vivo" e será portador do Evangelho eterno para todos os povos. Estas ideias penetraram dentro da ala direita da Ordem Franciscana através do livro "Introdução ao Evangelho Eterno" de Gerardo de Borgo San Donnino (+ 1276). Muitos dos "Espirituais" viram em São Francisco o "Anjo do Sexto Selo", assinalado com os estigmas e portador do "Evangelho eterno", que seria a Regra. Entenderam que os franciscanos seriam esses "homens espirituais" destinados a instaurarem a nova ordem, e a nova Igreja espiritual, sob o sinal da pobreza. Os "Espirituais" passam agora a ser os que, pertencendo à Igreja espiritual, se opõem à hierarquia, adquirindo assim esta denominação um novo sentido.
3.2. - As principais figuras dos Espirituais
Durante o Concílio de Lião, surgiu na Província das Marcas um movimento que hoje chamaríamos de “Objetores de Consciência” que preconizava a desobediência ao Papa, por julgarem que este ia obrigar os franciscanos a possuir bens em comum. Entre os rebeldes destacaram-se Pedro de Macerata (+ 1307) e o famoso Ângelo Clareno (+ 1337). Outra campanha dos Espirituais desencadeou-se na região da Provença, e teve como principal corifeu Pedro João Olivi (+ 1298), teólogo eminente e tido por santo. Foi o verdadeiro chefe ideológico do movimento revolucionário. Opunha-se, sobretudo, à doutrina do "uso pobre" da Bula "Exiit qui seminal". O Papa Nicolau IV, juntamente com o Geral Mateus de Acquasparta procedeu duramente contra eles. Mas quando foi eleito Celestino V (1287-89), que era um santo monge, viram nele o "Papa Angélico" das profecias de Joaquim di Fiore e sentiram-se protegidos por ele. Veio logo a seguir Bonifácio VIII que excomungou Ângelo Clareno e demitiu o Geral Gaufredi (1289-95) que os protegia. Nos ataques contra o Papa distinguiu-se outro grande chefe dos Espirituais, da região da Toscana, Ubertino de Casale (+ 1329) homem douto e contemplativo mas também algo visionário, que pregava contra a "Igreja carnal".
3.3. - Nova discussão e a Bula "Exivi" (1309-12)
Clemente V (1305-14) quis ser mais suave que Bonifácio VIII e foi condescendente para com os Espirituais. Nomeou uma comissão de Cardeais para levar a cabo uma investigação imparcial. Foram convocados religiosos representantes das duas facções. A princípio, parecia que tudo seria favorável aos Espirituais, mas foram os da Comunidade que ao fim viram reconhecidas as suas razões. A Bula "Exivi de Paradiso" (1312) estabelece o grau de obrigatoriedade de cada um dos preceitos da Regra. Nela haveria 27 preceitos graves; doze exortações; seis conselhos e doze condições para admissão de noviços. A intenção era de sossegar as consciências. Mas não foi possível evitar a separação.
3.4. - Ruptura (1312-18)
O Papa tudo fez para pacificar a Ordem e tomou a seu cuidado a proteção dos Espirituais. O próprio Geral esforçou-se por corrigir todos os abusos contra a pobreza e demitiu todos os superiores que haviam sido demasiado duros para com os Espirituais. Tudo foi inútil. Era demasiado profundo o fosso cavado entre os dois grupos. Em vários sítios apareceram comunidades cismáticas dos Espirituais, particularmente na Toscana, na Sicília e na Provença. Bastantes deles foram encarcerados e outros excomungados por João XXII, que com a Bula "Sancta Romana" (1317) condenava os Espirituais de qualquer denominação. Não faltaram sequer as prisões perpétuas e as condenações à fogueira. Ubertino de Casale passou a viver com os Beneditinos mas quis conservar-se franciscano até à morte. Ângelo Clareno, refugiado no monte Subiaco constituiu-se Geral dos "Irmãos de vida pobre" (Fraticelli della povera vita). No seu livro "Apologia pro Vita sua", faz a sua declaração de amor à Regra de São Francisco e de fé na Igreja, a quem se sente unido pelo Espírito Santo, embora condenado pela autoridade hierárquica. Tanto Ângelo Clareno como Ubertino de Casale quiseram ser reformadores autónomos e legitimamente reconhecidos, não o tendo, porém, conseguido. Os Clarenos, continuadores dos "fraticelli" aceitaram os Visitadores apostólicos enviados por Martinho V, São João Capistrano e Santiago da Marta. Vieram mais tarde a reconciliar-se com a Igreja sob os pontificados de Eugénio IV (1413-17) e de Sixto IV, que em 1473 os colocou sob a obediência do Ministro Geral da Ordem. Em 1517 integraram-se totalmente nos Irmãos da "Observância".
CONCLUSÃO
O último decénio da vida de São Francisco já tinha sido decisivo para a fisionomia da nova Ordem, mas não há dúvida que foi o primeiro século que se lhe seguiu que acabou por dar à Ordem uma organização mais estruturada.
A caminhada foi árdua e difícil. A tensão, que já no tempo de São Francisco tinha aflorado entre as exigências dos irmãos letrados e a simplicidade dos primeiros companheiros agravou-se após a morte de São Francisco, por causa da interpretação da Regra e da observância da pobreza. A luta entre os "Espirituais" e os da "Comunidade" que trouxe à Ordem muitos dissabores e deserções, foi providencial para se clarificar, à luz do magistério da Igreja, qual o rumo que a Ordem devia seguir.
Era urgente discernir qual era o verdadeiro espírito da Regra e nomeadamente o da pobreza. Foi o que se conseguiu com sangue suor e lágrimas! A luta travada naquele primeiro, século vai agora prolongar-se nos séculos seguintes, pelos mesmos motivos, entre os Irmãos da "Observância" e os Irmãos "Conventuais", aos quais se virão juntar, já no século XVI, os Irmãos "Capuchinhos".

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REFLEXÕES: São Francisco e a Irmã Pobreza

  1. São Francisco de Assis (1182-1226), fundador da ordem franciscana, que ele nunca teve a intenção de fundar uma ordem de estudiosos, catedráticos, doutores ou intelectuais. Ele apenas acolhia aqueles que desejavam viver como ele, isto é, viver segundo o Evangelho. Francisco apresentava um ideal de vida, uma ideia de comunidade voltada para a prática da caridade, da pregação da palavra divina, ou seja, um ideal de vida itinerante marcado pela pobreza material, um estilo de vida semelhante à vida de Cristo, dos Apóstolos e dos primeiros cristãos.
NOTA: DE BONI, Luis Alberto. De Abelardo a Lutero: estudos sobre filosofia prática na Idade Média. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. p. 216. (COLEMAN, Janet. A History of Political Thought. From the Middle Ages to the Renaissance. Oxford: Blackwell Publishers, 2000.. p. 77).

  1. Francisco de Assis foi um homem profundamente evangélico e não um intelectual, nem propôs o saber como missão essencial de evangelização para seus membros. Mas soube imprimir tal dinamismo espiritual e evangélico em seus seguidores que foi capaz de criar um estilo peculiar de viver, de habitar no mundo e de interpretar a própria vida e o que acontece nela e, a partir daí, a elaboração de um sistema filosófico-teológico característico da família franciscana.
NOTA: MERINO, Jose Antonio. Historia de la filosofia franciscana. Madrid: BAC, 1993. p. 17.

  1. A Ordem dos Frades Pregadores (Ordo Fratum Praedicatorum), mais tarde conhecida como Ordem Dominicana, foi fundada por Domingos de Gusmão (1170-1221), por volta do ano de 1215. O principal objetivo dessa ordem era o combate das heresias através da pregação. Nesse sentido, “para ser bem sucedido na pregação, Domingos pensou que seria vital ser visto como um exemplo por viver uma vida simples, na perfeição apostólica”.
NOTA-1: Cf. FRAILE, Guillermo; URDAÑOZ, Teofilo. Historia de la filosofía. Filosofía judía y musulmana. Alta escolástica: desarrollo y decadencia. Madrid: BAC, 1986. p. 224.
NOTA-2: “To succeed in preaching, Dominic thought it vital to be seen as setting an example by living a simple, more apostolic life than that of the church’s ecclesiastical dignitaries” (COLEMAN, 2000, p. 78)

  1. O problema da pobreza surgiu no ocidente medieval a partir do século XIII e tem como ponto principal a polêmica da relação de Nosso Senhor Jesus Cristo e dos apóstolos com a propriedade. De modo geral, os franciscanos viam São Francisco de Assis, o fundador da ordem, como um homem que via a pobreza como a maior de todas as virtudes. Assim sendo, ele pregava um modo de vida simples, sem ostentação, e, por isso, cada frade deveria viver somente do necessário para a sobrevivência do corpo. As acomodações deveriam ser o mais simples possível. A Regra Bulada dos franciscanos afirma que “os irmãos não devem se apropriar de nada, nem de casa, nem de lugar, nem de coisa alguma”.
NOTA: Cf. Regra Bulada, capítulo VI: “fratres nihil sibi approprient ne domum nec locum nec aliquam rem”. In. FONTES franciscanas e clarianas. Tradução de Celso Márcio Teixeira (et alii), 2. ed. RJ: Vozes, 2008. p. 161.

  1. A contenda acerca da vida de pobreza não foi um tema incômodo somente para as ordens mendicantes – franciscanos e dominicanos –, todavia, também inquietou as autoridades eclesiásticas, sumos pontífices, religiosos e leigos.
NOTA: Cf. DE BONI, 2003, p. 244s.

  1. Do amor à santa Pobreza surgiu a controvérsia sobre o verdadeiro valor e a posição real do homem na sociedade, questionados pela proposta de São Francisco. Para os franciscanos do século XIII – e o mesmo também pode ser válido para os tempos atuais –, a contenda acerca da pobreza era um questionamento sobre a sociedade e as suas instituições, muito mais simples e muito mais profundo do que se pode imaginar, a saber, é possível outra sociedade e outra economia?
NOTA: Cf BÓRMIDA, Jerónimo. No-propiedad: una propuesta de los franciscanos del siglo XIV. Montevideo: Editorial Misiones Franciscanas, 1996, p. 11.
  1. As controvérsias de longa duração sobre a pobreza franciscana – entre 1250 e 1340 – despertaram muitas questões. A ideia franciscana de pobreza sem quaisquer direitos de propriedade ou posição legal provocou o debate sobre os direitos do indivíduo à propriedade e à subsistência. A análise dessas contendas oferece, entre outros elementos, uma ampla perspectiva sobre como a terminologia dos direitos naturais se desenvolveu no final do século XIII e no início do século XIV.
NOTA: Cf BÓRMIDA, Jerónimo. No-propiedad: una propuesta de los franciscanos del siglo XIV. Montevideo: Editorial Misiones Franciscanas, 1996, p. 11.
  1. A pobreza evangélica segundo Francisco de Assis é a busca da pobreza visando se despojar de si para estar mais aberto ao Pai. Receber tudo, não possuir nada: é assim que poderíamos resumir a regra de São Francisco. E, sobretudo, não ter a tentação de possuir o que se recebeu. Retomar incessantemente esse trabalho de despojamento. A lição é simples: não é bom ser pobre ou doente – a doença causa sofrimento, e o próprio Francisco não escondeu no final da sua vida que sofria muito –, mas quando se é pobre ou se está doente, torna-se dependente do amor dos outros. A pobreza tem um valor pedagógico: ela proporciona que o homem se dê conta de que não é autossuficiente, tentação do orgulho e do egoísmo, mas que é, ao contrário, feito para amar e ser amado. A pobreza de Francisco é, portanto, uma pobreza voluntária ou, pelo menos, aceita. A pobreza que não é voluntária é um grande sofrimento; ela pode destruir. É por esta razão que é preciso libertar aqueles que de alguma forma são escravos. Francisco sempre coloca os pobres “reais”, isto é, as vítimas da miséria ou da doença, na frente dele. E se ele jejua é, em primeiro lugar, para compartilhar o pão. Entre os discípulos de Francisco, a preocupação com os pobres é constante. A caridade sempre fez parte da vida dos franciscanos, religiosos ou leigos. No doente, vítima por excelência, uma vez que é sempre inocente da doença que se sofre, o franciscano reconhece o Cristo sofredor, vítima também ele. Mas, para ser voluntária, esta pobreza não deve transformar-se numa corrida para a miséria, da qual se pretende ser o campeão. São Boaventura denunciou este tipo de expertise da pobreza em alguns de seus frades. Em seu testamento, Francisco menciona especificamente o hábito próprio dos frades, um hábito rústico, remendado o quanto for possível, uma túnica de trabalhador ou de camponês. Humilde, mas suficiente. Porque a verdadeira pobreza não está nos extremos; a pobreza do corpo é apenas um instrumento; a verdadeira pobreza está na atitude interior que consiste em receber de Deus, dia a dia, o que ele concede ou não, mesmo o inesperado. Acolhido um dia, rejeitado no dia seguinte. E não olhar para si mesmo, nem para o que deu. O que, portanto, a pobreza proporciona? Nada, senão a confiança total em Deus. E a confiança total em Deus dá a alegria.
NOTA: Reportagem é de Yves Combeau e publicada no sítio da revista francesa La Vie, 21-06-2013.

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